Melissa Silva, responsável de comunicação da Movistar Team, fala sobre o seu percurso impressionante no ciclismo e antevê o Tour de France Femmes
Melissa Silva é portuguesa e natural de Anadia, terra de ciclismo. Com efeito, ela conhece a modalidade de todas as perspetivas: do nacional ao internacional, da estrada à pista, da competição à organização, até empresarial. Depois de uma breve passagem na Portuguese Cycling Magazine, como correspondente da nossa página em provas World Tour, tornou-se responsável de comunicação da Movistar Team feminina em abril de 2024.
É com o entusiasmo de quem está viver o seu sonho, e com esse sentimento reforçado pelo início iminente do Tour de France Femmes, que Melissa Silva aceitou conversar connosco sobre as suas impressionantes experiências de ciclismo e de vida.
Esta é uma entrevista imperdível para todos aqueles que sonham no ciclismo! Mesmo que em Portugal seja difícil realizar esses sonhos, o exemplo da Melissa mostra como devemos tentar, confiando no trabalho, na paixão e também nas circunstâncias, porque nunca sabemos aquilo que está reservado para nós.
Portuguese Cycling Magazine – O teu percurso no ciclismo começou como corredora. O que te levou a pendurar a bicicleta tão nova?
Melissa Silva – Eu corria, e tive uma queda bastante grave nos campeonatos nacionais, em que fraturei duas vértebras e estive a menos de um milímetro de ficar paralisada. Quatros meses sem bicicleta, um mês de cama. Então acabei por deixar o ciclismo na parte profissional… em Portugal, se o risco é tanto e não recebes, se ficas mal, de onde vem o dinheiro, como é que te consegues manter? Era impossível para mim deixar o ciclismo, mas a competição foi nesse sentido. Infelizmente, no ciclismo feminino em Portugal não se recebe nada, pelo contrário, na altura eu pagava para correr. Eu teria de ganhar dinheiro de outra forma para fazer a minha paixão, e ainda corri o risco de não poder fazer nada das duas.
Depois, trabalhaste na Federação Portuguesa de Ciclismo e em empresas ligadas ao ciclismo. O que aprendeste com essas experiências?
Uma coisa é ver uma corrida como ciclista, outra coisa é ver uma corrida do lado da organização e perceber as barreiras que o ciclismo nacional tem, infelizmente muitas. Ganhei essa perspetiva: como ciclista criticava muito, mas estando do outro lado percebi que tentamos superar essas barreiras, mas é difícil. E acabamos por perceber mais de ciclismo. Eu comecei por ver ciclismo de pista, porque sou de Anadia e temos o velódromo. Não sabia nada de ciclismo de estrada, e foi a Federação que me deu uma perspetiva geral de todas as vertentes, desde as escolas, porque não andei numa escola, comecei a andar de bicicleta por mim, fui melhorando e no final fui convidada para uma equipa.
Depois da Federação, fui para Itália e trabalhei com a Scicon. Aí ganhas uma outra perspetiva de ciclismo internacional, porque o ciclismo nacional é pequeno. Também ligamos aos pormenores, mas não estamos a pensar nuns óculos que nos tirem um segundo, porque não temos dinheiro nem dimensão de ciclismo para isso. Trabalhando com ciclistas da UAE Team Emirates e da Jayco AlUla, foi aí que comecei a entrar no ciclismo World Tour: estares numa empresa internacional, e teres a oportunidade de ir ao Giro com a empresa, acaba por te permitir um contacto diferente com os ciclistas.
Depois de Itália, quis-me aproximar mais do ciclismo, e foi quando me mudei para os Países Baixos. Comecei a trabalhar para uma agência de marketing de ciclismo, acabei por ter uma perspetiva diferente dos ciclistas amadores de fora de Portugal, e ao mesmo tempo com a Rapha. São patrocinadores da EF Education-EasyPost e acabas também por ter uma visão diferente, agora a nível de roupa. Sem dúvida, todo este percurso deu-me conhecimento das reais necessidades de um profissional World Tour.
Seguiu-se a Portuguese Cycling Magazine no teu percurso, e devo dizer que foi um prazer para todos nós ter-te como colega, ainda que só durante uns meses. Como olhas para o nosso projeto?
É um projeto que não é comum em Portugal, principalmente pela vertente internacional. Em Portugal vamos sempre acompanhando, mas internacionalmente é difícil ter alguém presente no local para dar uma perspetiva diferente. Com a Portuguese Cycling Magazine, consegui ter acesso a muitas coisas que não conseguiria por mim própria. Acabas por conhecer muita gente importante e também viver experiências, como as aventuras de uma corrida de ciclocrosse, em que para passar para perto dos ciclistas, tens de passar por muita gente e lama (riso). Se não pudesse estar numa corrida nesse sentido, nunca teria conhecido o Thibau Nys ou o Filippo Ganna, por exemplo. E creio que, para os portugueses, estas aventuras acabam por ser engraçadas, porque não temos nada semelhante no sentido de mostrar o por detrás de uma corrida. As informações que os meios de comunicação partilham conseguem-se obter por outros meios, mas informação e imagem durante corrida é diferente.
Dos artigos que escreveste e provas que fotografaste, qual foi a coisa que mais gostaste de fazer na PCM?
Os Europeus de pista [janeiro de 2024], com os melhores ciclistas da Europa e os portugueses a lutar. Estar dentro de um velódromo nos Países Baixos, fazer uma entrevista ao Harrie Lavreysen, a maior máquina de sprint, e poder vê-lo ganhar uma corrida desde as boxes, foi de outro mundo! O público holandês vibra muito, ele ganhou o sprint com uma distância absurda, e o velódromo esteve completamente ao rubro. Foi dos momentos mais arrepiantes que vivi numa corrida e pela PCM.

Como é que se deu a tua entrada na Movistar Team?
Trabalhar na comunicação de uma equipa World Tour era o meu maior sonho, e já vinha a procurar alcançá-lo desde que acabei a minha pós-graduação em marketing na Universidade de Coimbra. Fui tentando entrar em equipas mais pequenas, até que um dia estava no Linkedin e vi que tinha aberto uma vaga na Movistar. É daquelas coisas em que tu pensas ‘vou tentar, mas é óbvio que não vou conseguir’, mas acabei por conseguir. Tive a entrevista mais caótica possível: estava com 40 graus de febre, a minha voz quase não saia, mas é aquela oportunidade que não podes perder. Devo ter feito a melhor entrevista da minha vida, porque entre 500 candidatos – tinha noção que era o meu sonho, mas não tinha noção que era o sonho de tanta gente – entrei. Ligou-me o Juan Pablo [Molinero], o diretor de marketing da Movistar, a dar a notícia de que eu tinha ficado com a vaga e queria começar comigo imediatamente. Estava no turno da Rapha e não queria acreditar… os meus colegas só me perguntavam se estava bem, porque devo ter ficado completamente parada. Soube antes da Flèche Wallone e da Liège-Bastogne-Liège e já fiz essas corridas com a Movistar.
Como é que esta notícia mudou a tua vida, principalmente no teu emprego?
Tive a sorte de ter um chefe incrível, que já tinha percebido que eu acompanhava todas as corridas da época de clássicas com a Portuguese Cycling Magazine. Ele dizia-me sempre “Melissa, quando olho para ti quando falas das corridas que foste ver no fim de semana, eu sei que aquele é o teu trabalho de sonho e ali vais ser feliz.” Nesse momento, a Rapha estava a passar por dificuldades financeiras e teriam ou de diminuir o horário de trabalho de todos os funcionários da loja, ou de despedir alguém. Ele tinha chamado, nessa mesma semana, um por um os funcionários da loja para lhes fazer a proposta. Eu comentei que na semana anterior tinha tido uma entrevista com a Movistar, mas que não sabia se ia entrar, para ele ter noção de que eu estaria aberta a mudar o meu contrato. No dia em que soube, mandei-lhe uma mensagem simples a dizer “temos de falar”. Ele deu-me logo os parabéns e perguntou quando é que eu tinha de começar. Supostamente tinha de dar um mês à casa, mas ele disse “trabalhas amanhã, que tens o turno coberto, e por mim vais pelo teu sonho”. Ainda há pouco tempo, fui visitá-lo e ele estava super feliz [por mim]. Mais do que um chefe, ele era um amigo que sabia onde eu era feliz e deixou-me sonhar.
No teu trabalho de sonho, como é que foste recebida?
Super bem! Estava a equipa masculina e feminina [no hotel], porque nas clássicas ficam sempre juntos. Fui recebida pelo Pablo Ordorica, que me meteu completamente à vontade – ele é a típica pessoa do sul [da Europa], que fala, sorri e oferece ajuda. Foram super acessíveis e senti-me super bem desde o primeiro momento na equipa, desde ciclistas a staff… principalmente as raparigas, porque passando eu a ser a [responsável de imprensa] principal das raparigas, elas foram bastante amigáveis, os rapazes um pouco mais tímidos, mas também tudo bem.

Como te sentiste na tua primeira prova?
A primeira prova foi muito caótica. Foi a Flèche Wallone, aquela prova horrível de frio. Quando chegámos ao parque de equipas, sabíamos que ia chover, mas não que ia estar o tempo que esteve. No momento da apresentação da Movistar, eu estava de frente [para as ciclistas], começou a nevar e depois de passar a neve, começou a chover torrencialmente. Eu tinha de entrar num carro de equipa para ir para um dos pontos de abastecimento. Num carro de abastecimento, consegues fazer mais pontos [do percurso] e acabas por ter mais conteúdo, porque se não acontecer grande coisa na corrida, o carro de corrida não é chamado à frente e não tens acesso a muita informação. Eu sabia que tinha de correr, porque esse carro saia antes da partida real, e nesse dia a apresentação da Movistar era muito junto ao início de corrida. Eu não estava preparada para aquele frio e aquela chuva, com uma máquina que pesa 2 quilos na mão a correr por Huy, ou seja, começou logo numa aventura total (riso). Mas no final acabou por correr tudo bem.
Agora que já estás dentro da rotina, como funciona o teu dia em prova?
Normalmente faço sempre uma análise de corrida, por exemplo, para o Tour já fiz uma análise etapa a etapa, para saber pontos-chave ou qual das nossas atletas seria melhor para aquela etapa. Eu levanto-me sempre à hora do staff, tomamos o pequeno-almoço todos juntos para termos um momento de descontração antes da corrida. A seguir, começo a recapitular tudo aquilo que vai acontecer na etapa, tanto pormenores como também algo que os diretores possam partilhar comigo. Vou para a apresentação da equipa fazer o meu conteúdo normal e dependo do carro de abastecimento conseguir chegar à meta, senão vou no autocarro. Fazemos 2 a 3 abastecimentos, aí eu crio conteúdo vídeo ou foto, e dou sempre informação no Twitter ou Instagram, dependendo do impacto, daquilo que estou a ver na corrida, com informação do procyclingstats ou dos rádios; analiso a corrida, o que pode vir a seguir, momentos-chave, ciclistas-chave, e também tento ver quem vai na fuga e diferenças de tempo. Chego à meta e cruzo os dedos, para ver se a vitória sobra para nós (riso). Pode acontecer ganhar, pode não acontecer, faço o conteúdo do final da etapa, como é que elas chegam e que tipo de abastecimento fazem. Depois podemos ter de ir ao pódio, temos de ir ao controlo e temos de dar as entrevistas. No hotel começa o meu verdadeiro trabalho: sentar à frente do computador e ver foto por foto, editar, criar vídeos, resumir a etapa, e depois publicar tudo nos canais da Movistar. Portanto é um dia corrido e às vezes muito longo – no Giro, acordava todos os dias às 6 da manhã e deitava-me à meia-noite – mas muito divertido, cheio de trabalho mas cheio de aventuras também.
O Giro d’Italia trouxe o maior exemplo desse teu dia de prova, especialmente na vitória da Liane Lippert numa etapa. Como viveste esse dia?
Eu lembro-me de estar na meta e não conseguir parar. Faltavam uns 10 quilómetros e ela já vinha na fuga há imenso tempo, vias o tempo a baixar e a subir e não sabias bem o que podia acontecer. Estavam 43 graus, um calor insuportável, na linha de meta, onde o Giro tinha a televisão e conseguias estar a acompanhar. Sabia que tinha sido um ano horrível para ela [Liane], com uma fratura no início, mas ela tinha trabalhado imenso, e tinha bastante pressão, não só da equipa mas pessoal. Eu sabia que se ela ganhasse, e eu estava muito confiante que sim, seria um momento único para toda a gente, porque toda a gente a acompanhou nas desmotivações que teve, por exemplo, ela não fez a Vuelta que esperava. Ver a Liane Lippert, que no início do Giro estava completamente desmotivada e achava que não ia conseguir ganhar uma etapa, ali a lutar, arrepia… eu chorei a vê-la falar na flash interview, ela não chorou mas tinha a lágrima no canto do olho. Lembro-me de gritar, ouviu-se em toda a avenida (riso), porque conseguia ver o entusiasmo na cara dela, e ela conseguia vê-lo mim, e aquele abraço final acabou por mostrar isso. Mais do que colegas de trabalho, temos ligação e conseguimos perceber o quão importante é, não só para equipa, mas para ela, por toda a dor que passou nos últimos meses. Foi, para mim, o momento mais especial com a Movistar.

Quem são os teus melhores amigos na equipa?
Do staff são todos incríveis, mas muitas vezes divido quarto com a Lide [Larrañaga], que é massagista e também faz abastecimento. Eu diria a Lide, partilhamos muitos momentos, quando às vezes chegamos ao quarto e desabafamos, ou quando elas estão em massagem e estamos todas as disparatar (riso). Ciclistas também tenho, a Claire Steels e a Mareille Meijering. Com a Claire Steels, naquela Flèche Wallone acabou por se criar uma ligação. Ela entrou quase em hipotermia e teve de entrar no carro onde eu estava. A maneira mais simpática de conheceres alguém é teres alguém sorridente ao teu lado, ela dizia assim: “não havia pior maneira de tu me conheceres no meu pior estado, portanto quando me conheceres no meu melhor estado, será melhor” (riso). Ela vive em Maiorca, quando fui a Maiorca combinámos um jantar e acabámos por ser amigas. No Giro, tive os momentos de etapa mais engraçados com ela e a Mareille. A Mareille é porque é holandesa, vive a 30 minutos de mim nos Países Baixos, e é muito fácil estar com ela. Uma holandesa nada holandesa: mega simpática, acessível, humilde. Mas dou-me bem com todas, acho que é o natural do ciclismo feminino, é muito fácil dares-te bem com todas.
O Tour de France Femmes está quase aí e parte dos Países Baixos, que é onde resides. Vai ser mais especial por ser em ‘casa’?
Vai ser mais especial, também pelo público holandês, e a Movistar vai levar as duas holandesas que tem na equipa. Vai ser duro, uma corrida típica holandesa, com canais e estradas apertadas, um início muito caótico; vai dar muito jeito ter duas holandesas, que conhecem super bem as estradas. A Holanda é um país que adora ciclismo e em termos de paisagem vai ser incrível, estando a chover ou não.
Estás muito entusiasmada para fazer o Alpe d’Huez?
O Alpe d’Huez é um sítio que eu quero visitar há algum tempo, acho que vai ser bom! Agora, será que vou fazer de carro, será que vou fazer a pé? Não sei, em princípio o autocarro poderá subir, mas às vezes tem de ficar cá em baixo. De qualquer das formas, no Alpe d’Huez, espero ter um ambiente incrível, cheio de pessoas. Acho que todas elas já o subiram, sei que pelo menos a Mareille já fez o reconhecimento da etapa – nos Países Baixos, existe uma angariação de fundos que consiste nos holandeses viajarem ao Alpe d’Huez e subirem-no. Tive algumas subidas no Giro que já foram arrepiantes, mas sendo o Alpe d’Huez, não espero menos do que isso.
Por fim, tens algum prognóstico para a corrida?
Vai ser um Tour muito difícil, mas tendo em conta a corrida que eu vi da Liane Lippert nos Jogos Olímpicos, espero por uma [vitória em] etapa. Não digo que vá lutar pelo top 10, tendo em conta as ciclistas que vão participar no Tour, é difícil um top 10, mas é possível uma etapa. Espero também da Mareille Meijering, porque ficou mesmo à porta do top 10 no Giro. Não digo ganhar etapa, porque temos a Demi Vollering que vai tentar todas as etapas de montanha, mas espero alguns top 10 e talvez um pódio.

Agradecemos à Melissa Silva por nos ter concedido esta entrevista e desejamos-lhe boa continuação do seu percurso com a Movistar Team.
Fotos: Melissa Silva