Trabalhar com os melhores do mundo
Como são Jonas Vingegaard, Wout Van Aert e Primož Roglič em pessoas?
São super fantásticos e humildes, não é por serem famosos que têm o nariz empinado. Por exemplo, depois de o último ciclista acabar a etapa, vamos para o hotel e muitas das vezes vêm as famílias dos próprios corredores, sentam-se connosco na mesa, Sempre cumprimentam, sempre perguntam como está a família em casa, se está tudo bem, sempre se despedem das pessoas antes de se irem embora e abraçam-nos, embora sejamos simples mecânicos. Todos eles são fantásticos. A fama é simplesmente uma coisa extra para eles, não fazem mais do que humanos vulgares.
É evidente, para todos os fãs de ciclismo, que nomes como Vingegaard, Wout Van Aert e Primož Roglič se transfiguram para um nível quase extraterrestre quando montam na bicicleta, mas Hilário Coelho assegura que no dia-a-dia, os seus pés estão bem assentes na Terra. Para essa situação, contribui o apoio das respetivas famílias, que não dispensam um bom convívio com o staff da equipa.
Qual é a tua melhor história com um grande ciclista?
Estávamos [Jumbo-Visma] em estágio em Alicante, em Espanha, e os ciclistas saíram para treinar, como fazem todos os dias, por volta das 9:30 da manhã. Certo dia, antes do treino, o Wout Van Aert vinha com um Red Bull na mão e eu, a brincar com ele, disse-lhe ‘não precisas disso, já tens força suficiente!’ Ele olhou para mim, enquanto se ria da piada que eu tinha acabado de dizer, e pediu-me para gravar um vídeo dele a abrir e a beber o Red Bull. Assim o fiz, ele abriu o Red Bull e levou-o à boca, depois parei o vídeo e ele disse-me ‘se fosse mais tarde até bebia isto, mas ainda é muito cedo, por isso não vou beber agora’. Ele olhou para mim e disse ‘pega, bebe tu!’. E eu ‘às 9 da manhã vou beber um Red Bull?’ Enquanto lhe devolvia o telemóvel, ele deu-me na outra mão o Red Bull e ficou a olhar para mim. Eu disse-lhe ‘Ok, não tenho problema em beber isso agora, até estou a precisar de energia extra esta manhã!’. E claro que bebi.
De novo, todos sabemos que Wout Van Aert dispensa energia matinal extra, mas Hilário Coelho terá, alegadamente, ganho asas naquela manhã em Alicante… e as suas experiências com grandes ciclistas não acabam aqui!

Fonte: Kristof Ramon / Red Bull
Ao que consta, também tens uma história com o Tadej Pogačar. Podes contar-nos?
Com o Tadej foi na Volta ao Algarve em 2019. Ele era simplesmente um miúdo que chegou ali para preencher uma vaga, porque outro ciclista estava doente […]. Então, eu escrevi no grupo de Whatsapp que temos com os ciclistas ‘para amanhã, há algumas mudanças de alguma coisa na bicicleta (cassetes, rodas…)?’. Todo o mundo respondeu menos o Tadej Pogačar. E este miúdo chegou à partida, viu a sua bicicleta e perguntou-me ‘Hilário, posso ter umas rodas diferentes?’. Claro que nós não temos os perfis todos dentro do carro, porque sabemos que só podemos levar 3/4 pares de rodas, com sorte. E quando o Tadej pede-me aquilo, eram as rodas que eu tinha para proteger o Fabio Aru, que era o nosso líder nesse dia. Então, eu olhei para ele, nem sabia o nome dele, ‘rapaz, por amor de Deus, eu escrevi ontem a mensagem no grupo, todo o mundo respondeu menos tu’. Ele disse ‘desculpa, passou-me’ e eu ‘vamos ver o que podemos mudar desta vez, mas a partir de agora, se vais mudar as rodas, mandas a mensagem no dia antes’, disse eu chateado, porque não era justo o Fabio não ter rodas.
Descobrimos assim que a estreia de Tadej Pogačar em provas de elites ficou marcada, desde logo, por uma discussão com o seu mecânico naquela semana, Hilário Coelho. Mas nesta discussão, como sabemos hoje, o ciclista esloveno guardou o melhor argumento de todos para o final da etapa:
O que aconteceu depois? O Tadej ganhou. Quando eu ouvi ‘vitória para UAE Team Emirates’, pensei ‘boa, Fabio Aru, número 171!’, mas afinal era o 177. Então olhei para o diretor, que era o Allan Peiper, muito famoso no ciclismo, e ele disse ‘é o miúdo novo, o Tadej Pogačar’. Nem sabíamos dizer bem o nome dele […]. Foi a primeira vez que o Tadej Pogačar foi descoberto: ganhou isso, depois continuou no contrarrelógio e venceu a Volta ao Algarve. Depois nunca mais ninguém se esqueceu do nome. Eu próprio cheguei ao pé dele e disse ‘parabéns, a partir de agora podes mudar as rodas quando tu quiseres!’
Assim, foi com as rodas suplentes de Fabio Aru, líder da UAE Team Emirates à partida para a Volta ao Algarve 2019, que Tadej Pogačar se apresentou ao pelotão de elites, vencendo no Alto da Fóia. A personalidade ‘descontraída’ do ciclista esloveno, essa foi a mesma desde o início, e há contraste com outros ciclistas mais ‘preocupados’.
No seguimento desta história, podes dizer que o Tadej Pogačar é daqueles ciclistas que se preocupa muito com a bicicleta?
O Pogačar não é daqueles ciclistas que vai se importar com a bicicleta. Entre ele e o Van Aert, por exemplo, o Van Aert antes de começar a corrida sempre pergunta qual é a pressão que tem nas rodas, no tubular. E o Tadej nunca perguntou qual é a pressão que tem dentro das rodas. O Tadej agarra na bicicleta e corre, o Wout sempre pergunta. É a diferença entre um e o outro.

Fonte: Tim de Waele / Getty Images