2023 tem sido um ano preenchido para a parceria entre a Netflix e a Box to Box Films. Depois do enorme sucesso de Drive to Survive, que transformou um grande grupo de espetadores antes indiferente em novos fãs de Fórmula 1, este ano são já três as séries provenientes desta colaboração. Entre elas está Tour de France: Unchained, estrategicamente lançada a menos de um mês do início da Grande Boucle, numa tentativa de emular o efeito de Drive to Survive e atrair novos (e mais jovens) públicos à corrida e à modalidade. Tendo isto em conta, não surpreende que o produto final seja tão didático e introdutório como é.
A série conta com oito episódios e com a participação de várias equipas: Quick-Step Alpha Vinyl Team (agora Soudal – Quick Step), EF Education-EasyPost, Jumbo-Visma, Groupama – FDJ, AG2R Citroën Team, INEOS Grenadiers e Alpecin-Deceuninck. Cada um dos episódios procura mostrar uma diferente faceta do ciclismo profissional, uma abordagem que, no geral, evita redundâncias e funciona bem, permitindo que cada episódio tenha um arco único. O episódio 3 é o mais efetivo em entregar um arco emocional impactante, com o seu foco em Thibaut Pinot e na rivalidade das duas principais equipas francesas (Groupama – FDJ e AG2R Citroën Team). As imagens finais de Pinot a caminhar depois da etapa 9, que perdeu, em fuga, para Bob Jungels, são o momento mais comovente de toda a série e um dos poucos em que a manufatura de emoções e suspense realmente funciona. Antes disso, há também pequenas pérolas como Pinot a chamar Marc Madiot, diretor da equipa, de “mãe galinha”.
No lado oposto, temos o episódio 1, que consegue a proeza de estragar uma história tão inspiradora como a da recuperação de Fabio Jakobsen até à sua primeira participação no Tour. O aparente fascínio que a equipa de produção da série tem por imagens de quedas está presente logo desde o início, mesmo que ainda não no seu máximo esplendor, e qualquer oportunidade para mostrar ciclistas no chão é aproveitada. A assustadora queda de Jakobsen na Polónia, por exemplo, é mostrada várias vezes neste episódio e, por motivos difíceis de compreender, aparece também noutros. No episódio 5, que usa o embate de Tom Pidcock e Neilson Powless na etapa do Alpe d’Huez como ponto de partida para contrastar as equipas da INEOS Grenadiers e EF Education-EasyPost, a única aparição de Rigoberto Uran (à exceção de uns segundos no episódio final) na série é usada unicamente para mostrar quedas. Apesar de as quedas fazerem parte do ciclismo, a reprodução constante deste tipo de imagens banaliza-as e transforma-as em espetáculo, não sendo a melhor forma para introduzir alguém a este desporto.
Para além disto, a série tem também alguns problemas decorrentes da fórmula dos conteúdos desportivos, embora estes sejam maioritariamente pequenas imprecisões e distorções de situações de corrida apenas passíveis de incomodar os mais picuinhas. A maior delas está presente no episódio 7, onde é fabricada uma luta pelo terceiro lugar entre Geraint Thomas e David Gaudu na subida do Hautacam. Caso o espetador não tenha qualquer conhecimento daquilo que aconteceu na corrida, essa luta é relativamente convincente, mas uma pequena visita à classificação geral à partida da etapa revela-nos que havia uma diferença de três minutos entre o britânico e o francês e que a tensão de que o episódio depende é inexistente.
Apesar de todas estas críticas, é impossível negar que há mais do que suficiente em Tour de France: Unchained para satisfazer qualquer fã de ciclismo. Momentos como Jasper Philipsen dizer que a sua alcunha é “Jasper Disaster”, imediatamente seguido do diretor da Alpecin-Deceuninck a dizer que não há espaço para desastres, a inacreditável descida de Pidcock no Galibier e a mestria tática da Jumbo-Visma na etapa 11 compensam todos os problemas da montagem, toda a adesão cega à fórmula e todos os clichés melodramáticos que impedem esta série de ser excelente e de atingir os picos de entusiasmo da corrida que retrata. Mesmo que o caminho seja atribulado, tudo vale a pena quando se chega a Paris.