Categories Entrevistas Estrada Internacional

PCM Entrevista: Hilário Coelho, mecânico da Jumbo-Visma

Os ‘três Tours’ e a Jumbo-Visma

A Lampre-Merida tornou-se na UAE Team Emirates e venceu o Tour de France em 2020 e 2021. Depois, em 2022, mudaste-te para a Jumbo-Visma e voltaste a vencer. Como único português a vencer Tours, qual é o segredo?

Eu já ganhei 3 Tours seguidos: ganhei 2 com o Pogačar, um em 2020 estando presente, outro em 2021 estando presente, e ganhei também no ano passado com o Jonas Vingegaard estando presente. Todo o mundo repara nisto, mas tive sorte, não é que eu tenha usado uma bola de cristal para ver quem é que ganhava o Tour. Eu optei por sair da UAE de livre vontade, porque tive uma boa proposta da Jumbo, e por isso ganhei. Se eu ficasse na UAE, como poderia, não teria ganho. Eu não sou o amuleto da sorte (risos)!

2020, 2021 e 2022. Hilário Coelho teve um papel importante em três ‘empreendimentos’ vencedores da maior prova de ciclismo do mundo, aos quais somou este ano o Giro d’Italia conquistado por Primož Roglič. Observando esta tendência, torna-se difícil refutar que Hilário, ao contrário do que afirma, traz mesmo sorte às equipas onde está. Até porque, aquando da sua mudança da UAE Team Emirates para a Jumbo-Visma, Jonas Vingegaard acabaria por bater Tadej Pogačar pelo lugar mais alto do pódio.

Como se deu a entrada na Jumbo-Visma?

[Uma transferência] vai através de muitos mecânicos, que estando no World Tour no tempo em que eu estou, obviamente já conhecem mecânicos de outras equipas, embora eles também tenham mudado de equipa várias vezes. Um exemplo é um [mecânico] que era da Lotto Soudal e mudou-se para a Jumbo-Visma já há três anos, então ele dizia-me ‘quando é que vens para aqui lidar connosco?’ e eu dizia ‘nunca se sabe, nunca se sabe’. Porque, no final de contas, nós somos de um mercado: eu tenho uma equipa onde estou a trabalhar agora, mas se existe outra equipa que dá outras condições, outras promessas e claro, dinheiro, nós mudamos sempre. Eu não sou o primeiro, nem serei o último. A paixão é sempre a mesma, estando na UAE, na Jumbo ou na INEOS, mas nós somos como material que está à venda, para quem quiser [comprar].

O mercado de transferências mexe não só para os atletas, mas também para os membros da staff, e as razões que movem Hilário Coelho são as mesmas que regem todo o comportamento humano num contexto como este. Apesar das somas monetárias variarem, a paixão ainda permanece sempre a mesma.

Hilário Coelho e a estrutura da Jumbo-Visma celebram a vitória no Tour de France, 2022.
Fonte: Facebook de Hilário Coelho

Como é a estrutura desta equipa, que é uma das melhores do mundo?

Eu gosto, são muito bem oleados. Por exemplo, na Volta à França do ano passado, nós tínhamos 16 carros, são muitos carros! Comparado com a UAE, já no ano em que o Pogačar ia para ganhar, eram 7 carros […]. Não é muito diferente da UAE, porque nos armazéns o trabalho é sempre o mesmo. Mas simplesmente [a Jumbo-Visma] é uma estrutura mais bem organizada, não tem medo de investir tudo; porque a UAE também tinha 16 carros, mas nunca mandava 16 carros ao Tour.

No ciclismo moderno, apenas um compromisso total com o projeto pode garantir vitórias e a Jumbo-Visma surge como uma jogadora que não receia colocar todas as suas cartas em cima da mesa. Apesar de estar apenas no seu 2º ano, Hilário Coelho já passou por muito com a equipa neerlandesa.

No Tour 2022, como viveste ‘a etapa do Paris-Roubaix’, em que os líderes da Jumbo-Visma tiveram problemas mecânicos?

Os colegas estiveram [envolvidos], eu por acaso não. Porque nós na Jumbo-Visma dividimos o trabalho: são três semanas de corrida e cada semana está um mecânico. Numa semana, um mecânico faz o primeiro carro, outro mecânico faz o segundo carro e outro mecânico faz hotel. E a seguir quem fez o primeiro faz o segundo, quem fez o segundo faz hotel, vamos mudando assim. E nesse dia calhava-me fazer hotel, por isso não estive envolvido nessa etapa. Mas os colegas disseram que foi uma loucura, o mecânico disse que já não sabia o que fazer, já nem sabia quem tinha problemas na bicicleta. Havia uma imagem que era o Vingegaard com uma bicicleta enorme e outra que era o mecânico a mudar três ou quatro bicicletas, como se fosse um polvo. Foi o caos!

Todos conhecemos a imagem viral da 5ª etapa do Tour do ano passado, com os ciclistas da Jumbo-Visma completamente desorientados após uma sequência de problemas mecânicos. Hilário Coelho assistiu ao caos a partir do hotel, completando o imaginário com os relatos dos seus colegas. Porém, o seu momento de caos chegaria também, mais tarde na competição…

[Também] tive uma imagem minha na Volta à França, montado na bicicleta do Vingegaard. Eu estava a fazer o primeiro carro nesse dia e ele teve uma queda. Então eu vou lá a correr com a bicicleta para o Vingegaard, porque [sendo ele o líder], não queremos saber de mais ninguém. Quando eu chego lá, o Vingegaard estava a montar-se na bicicleta. Então eu empurrei-o e quando ele estava a tentar pedalar, diz-me ‘preciso da minha bicicleta, preciso da minha bicicleta!’ e eu disse ‘ok Jonas, tenho aqui a tua bicicleta, queres?’ e ele ‘dá-me, dá-me!’, todo nervoso. Então jogou a bicicleta ao chão e foi [quase] um desastre. A primeira coisa que um mecânico tem de se preocupar é com a bicicleta e ele tinha acabado de lança-la para o meio da estrada, quando estavam 30 carros a passar! Desses 30 carros, bastava que um deles não visse a bicicleta e tínhamos ali trabalho para a noite inteira. Então consegue-se ver nas imagens eu a voltar para trás para apanhar a bicicleta e os carros todos a desviarem-se de mim.”

O trabalho de mecânico não está isento de riscos, como aquele que Hilário Coelho correu na 15ª etapa do Tour de France, para salvar a bicicleta do camisola amarela. Começamos assim a perceber que esse trabalho depende também, em grande medida, do ‘trabalho’ do próprio ciclista, na forma como reage às adversidades.

Na Volta à França também, dei uma bicicleta ao Van Aert e ele, tranquilo, sai da bicicleta, agarra no seu bidon, bebe água, guarda o bidon por baixo, monta-se em cima da bicicleta e vai. Não mete a pressão, são caracteres diferentes. [A performance do] ciclista tem muito a ver com a performance do mecânico também: o stress que mete, as informações que dá, porque às vezes também se dão informações erradas para os carros.

As informações erradas que Hilário menciona acontecem sobretudo em quedas, onde a avaliação dos danos que é transmitida para os carros depende unicamente das perceções (demasiado rápidas) dos próprios ciclistas. A interação entre ciclistas e mecânicos não se limita apenas à estrada, como veremos na próxima página.