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Daniel Silva: “Não me compensava continuar na modalidade”

Referenciado desde as camadas jovens como um dos maiores talentos da sua geração, Daniel Silva termina a sua carreira com apenas 22 anos, após a época de estreia entre os profissionais, ao serviço da Aviludo-Louletano. Nesta entrevista, revela os motivos para este abandono e reflete sobre a sua experiência e a realidade do ciclismo português.

Portuguese Cycling Magazine (PCM): Começando pela parte mais recente, o que leva um ciclista tão jovem a terminar carreira?

Daniel Silva (DS): É mais pela situação a nível financeiro, que não me compensava continuar na modalidade, pois o valor que eu iria ganhar na próxima época não correspondia ao valor que eu estava à espera e, por isso, na situação que nós estamos atualmente e, a pensar também no meu futuro, era uma situação que para mim não funcionava e tive que optar por outra situação.

PCM: Para o futuro, o Daniel já tem um negócio de massagens, é a isso que se vai dedicar?

DS: Sim, já comecei há cerca de um ano e fazia em conciliação com o ciclismo. Tenho alguma carteira de clientes, tenho alguns clientes que costumam marcar massagem regularmente e ia acabando por fazer massagens nos dias em que tivesse compatibilidade com os treinos e consegui ir conciliando. Agora, o objetivo passa por continuar a fazer massagens e angariar mais clientes e, se conseguir, arranjar mais algum trabalho à parte disso, enquanto não tiver uma carteira maior de clientes para conseguir abrir o meu próprio espaço.

PCM: E pretende manter alguma ligação ao Ciclismo?

DS: O que eu penso agora, depois de deixar a modalidade, é apenas dar umas voltinhas de BTT ou assim, mais ao fim de semana. Já são muitos anos que eu estive no ciclismo e também, deixar por esta razão, claro que tenho sempre vontade de dar uma voltinha de bicicleta, mas já não vai ser com a mesma intensidade. Pronto, irei dar umas voltinhas de vez em quando.

PCM: Este ano, finalmente numa equipa continental, mas foi um ano complicado.

DS: Sim, este ano comecei a época em Espanha, era uma corrida que eu queria estar bem, mas, por situações,… pronto, o ciclista às vezes, por muito que treine, as coisas não lhe corre bem. Corri na Volta a Múrcia, as coisas acabaram por não correr bem, acabei por chegar fora de controlo. Depois, corri logo no fim de semana a seguir a Prova de Abertura e mais a Clássica da Primavera e depois chegou esta situação da pandemia. E, com a pandemia, deixou de haver corridas. Numa altura ali na altura de junho que já estávamos a treinar com o pensamento de correr as provas do Agostinho e tudo mais a partir de agosto, tive uma queda a treinar, fraturei a clavícula e tenho estado com esta situação da clavícula já há mais de quatro meses. Pronto, hoje em dia já estou bem, mas foram uns meses um bocado complicados.

Daniel Silva com as cores da Aviludo-Louletano
Fonte: Federação Portuguesa de Ciclismo

PCM: Como é que foi a experiência no Louletano como equipa?

DS: Pois, a experiência não foi tão grande quanto eu gostava, não só devido à queda, mas também devido à situação da pandemia, pois só estivemos juntos mesmo em estágio em fevereiro, na altura da apresentação da equipa ali em Loulé e, pronto, fizemos umas três provas. O ambiente era bom, tinha malta porreira, davam-se todos bem, tinham as condições que precisavamos para correr, tudo ótimo. Era o ideal dentro de uma equipa profissional, só que depois não há só esse aspeto, também há outras coisas mais externas que também contam.

PCM: Antes do Louletano, esteve na Sicasal. É a melhor equipa de formação em Portugal?

DS: Sim, na minha opinião, porque é a equipa que tem as melhores condições. Não tem tantas condições como uma equipa profissional, porque não tem orçamento para isso, mas com o orçamento que conseguem arranjar tem ótimas condições. Tem bicicletas para correr e bicletas para treinar, há equipas profissionais que nem sequer têm bicicletas para treinar, a própria que usam para correr levam para casa e usam para treinar. Na sicasal tinha as duas, equipamentos, tinha hótel, quando a gente quisesse ir para lá, tinha sempre hotel disponível para nós, vários estágios durante o ano inteiro e era uma equipa que, sendo sub23, com um orçamento mais reduzido em relação às profissionais, tinha as condições parecidas com as de uma equipa profissional.

Tinhamos as condições todas e tinhamos atletas bons também e conseguimos fazer sempre bons resultados a nível sub23 e mesmo em provas com elites conseguíamos estar na discussão de algumas etapas e, ainda no ano passado, na última prova da época, que foi a Pista de Tavira, conseguimos vencer uma prova frente aos profissionais e na prova das 100 voltas conseguimos angariar a volta que dava mais dinheiro e tudo. Por isso, era uma equipa muito competitiva e com bons atletas.

PCM: Algo que a Sicasal faz muito, mais até que algumas equipas continentais, é o procurar ir muitas vezes correr a Espanha. Isso também é importante para o desenvolvimento dos ciclistas?

DS: Sim, é muito importante, porque também na nossa seleção nacional acabam por ir muitas vezes repetidamente os mesmos e acabam por outros atletas que também têm qualidade não conseguir ter grande experiência além fronteiras. A equipa tentava buscar provas, principalmente em Espanha que não é assim tão longe, e procurava fazer provas competitivas em Espanha e, mesmo assim, nós conseguíamos obter na mesma grandes resultados, porque a qualidade estava lá e o que precisávamos era de mais provas além fronteiras para nos irmos habituando a outros tipos de ritmos e novos estilos de corridas.

PCM: Na Sicasal, foi colega do Iúri Leitão, recente campeão europeu na Pista. O que perspetiva para o futuro do Iúri?

DS: O Iúri, desde que ele veio da pista não falei com ele, falei com ele na altura que ele estava a correr nos Europeus, sabia que ele ainda não tinha equipa, não sei como está a situação agora. Mas, ele como é um rapaz com grande qualidade, não só na pista, como na estrada, penso que seria sempre uma mais valia para uma equipa ter um ciclista como ele, porque ele no terreno plano e nas chegadas ao sprint é um ciclista que pode bater os profissionais.

E, como colega, é um excelente rapaz. Já estive muitas vezes com ele, eu e ele numa casa, mesmo há dois anos atrás no nosso primeiro ano na Sicasal, íamos correr os dois à pista aquelas provas de dezembro e ficávamos os dois em Anadia a dormir, vivia muito tempo com ele, é um rapaz porreiro.

PCM: Já que falamos do Iúri, também da sua geração dos juniores são o João Almeida e o Daniel Viegas. Na altura, o Daniel era um dos que mais luta dava ao Daniel e ao João. Já se perspetivava, especialmente para o João, aquilo que ele se está a tornar?

DS: Eu sempre vi, desde que ele começou a correr, que o João tinha grande qualidade. Apesar de não ter tantos anos de experiência como eu tinha na altura, porque eu entrei no ciclismo em competições logo com cinco anos e ele começou também a correr novo, mas é sempre diferente, ele começou mais em provas BTT e depois é que passou para a estrada. Via-se logo que ele tinha grande qualidade, porque ele em competição tinha boa visão de corrida, estava sempre em todas as corridas muito forte, ia sempre bem e acabava por as provas lhe correr bem. E o Viegas também era igual, já anda há muitos anos no ciclismo e, pronto, antes de entrar na mesma equipa, sempre foram mais os meus adversários, mais o Daniel, porque o Daniel corre há mais anos, corre há mais ou menos os mesmos anos que eu e era o meu maior adversário desde que ele estava na altura no BTT Loulé, desde que comecei a correr desde pequenino que era ele o meu maior adversário.

A triunfar numa das provas da Taça de Portugal de juniores
Fonte: Federação Portuguesa de Ciclismo

PCM: Quer em juniores, quer mesmo em Sub23, o Daniel fez alguns bons resultados. Qual foi aquele que mais vai recordar?

DS: O mais recente é da Volta a Galiza, no ano passado, que ganhei a camisola da Montanha. E a minha vitória numa Taça de Portugal de Juniores. Na altura, estava o João Almeida como líder, havia umas cinco provas da Taça, uma delas até aqui na Zambujeira do Mar, e houve uma prova em que um adversário caiu à minha frente, a cerca de dois quilómetros do fim, e não consegui pontuar nada, porque essas provas são por pontos e não por tempos. Eu nessa prova não pontuei nada e o João acho que tinha chegada no frente, conseguiu pontuar.

Na última prova da Taça, teoricamente dava para eu recuperar, ficar em primeiro lugar e ganhar por um ponto ou dois de diferença. Nesse dia, consegui ganhar e o João e o Daniel chegaram a uns sete ou oito minutos de mim, que cheguei sozinho fugido. Ganhei a etapa e fiquei ali à volta de três, quatro pontos da Geral, que teriam sido os pontos que podia ter feito na Zambujeira, e fiquei em terceiro nesse ano. Mas, pronto, foi essa a minha maior vitória, frente a adversários que a gente sabe onde é que eles hoje estão.   

PCM: Na passagem de Sub23 para profissional, certamente que também não sentiu tanto a diferença, porque muitas das corridas são as mesmas.

DS: Claro, mas há uma responsabilidade diferente.

PCM: Mas, sente que é fácil para um ciclista jovem em Portugal passar de uma equipa amadora para uma equipa profissional?

DS: Se for um ciclista que tenha qualidade e consiga dar nas vistas numa prova como o Jornal de Notícias ou o Abimota, é o suficiente fazer uma boa classificação. Não estou a dizer fazer 10 primeiros, que não é fácil fazer uma coisa dessas, mas ser regular fazer ali 30 primeiros, um dia, outro dia, o dia de montanha conseguir chegar ali num grupo da frente, isso vai sempre dando nas vistas, porque os Diretores vão sempre na frente da corrida e veem os atletas que acabam por chegar.

E um podium, por exemplo com uma camisola da Juventude, por muito que não ganhe a geral da Juventude, mas que vá um ou dois dias ao podium… Como foi o meu caso, que no JN fui quatro dias ao podium com a camisola da Juventude, acabei por não ganhar no final, mas aqueles dias todos vão acabando por somar e fotografias e tal e acaba por se mostrar sempre mais um atleta.

A celebrar a conquista da camisola da Montanha na Volta à Galiza
Fonte: União Desportiva do Oeste – Academia Joaquim Agostinho

PCM: Esta paragem deste ano foi especialmente prejudicial para as equipas amadoras e para os escalões de formação, como achas que vai afetar o futuro do nosso ciclismo? 

DS: Há equipas cá em Portugal, como o caso da Efapel, por exemplo, que é uma equipa que teve um grande retorno na Volta a Portugal e, se calhar, no meio destas grandes dificuldades, consegue manter a equipa com o mesmo orçamento que o ano anterior, enquanto que equipas Sub23 pode haver equipas que o orçamento já seja pouco e ainda possa diminuir ainda mais um bocadinho e os atletas, mesmo que já não recebam muito em Sub23, ainda receberem menos. Mas há equipas que, se tiverem umas Câmaras que gostem da modalidade – e há umas Câmaras que apoiam muito o ciclismo – que continuem a apoiar, que ainda tenham vida e continuem a sobreviver nas próximas épocas, mas com a pandemia, veio estragar um pouco isto.

PCM: Se fosse Presidente da Federação Portuguesa de Ciclismo por um dia, o que fazia ou mudava?

DS: A primeira coisa que eu fazia era ir equipa a equipa a ver se estavam a cumprir os regulamentos dos pagamentos dos atletas. E tinham que por os procedimentos que têm que ser feitos tudo como deve ser. Depois, não sei,… a principal é mesmo essa. Há muitas equipas que, em teoria, nós temos de receber um certo valor por época e nem todos fazem esses requisitos, o que leva também, como foi o meu caso, ao abandono da modalidade. Uma pessoa, por muito que goste da modalidade, andar aqui por meia dúzia de tostões não vale a pena.

PCM: Acredito. Na altura do confinamento, fizemos uma entrevista com o Paulo Couto, pouco depois de ele ser eleito Presidente da APCP e uma das coisas que ele falou foi exatamente de que fizeram um inquérito e que 70% dos atletas estavam com cortes nos rendimentos, o que é problemático, ainda para mais num ciclismo tão pequeno como o nosso.

DS: Sim, nós este ano recebemos o nosso primeiro ordenado em janeiro e depois em fevereiro e, depois, o ordenado de março, abril e maio foi reduzido a metade. Isso já foi uma grande perda. A mim, um bocado do mal que houve, como caí, estive de baixa quatro meses e ia recebendo de baixa a 70%, sempre era mais um bocadinho do que a equipa pagava e foi com o que fui conseguindo fazer alguma coisa, porque uma pessoa precisa de juntar, de pensar no futuro e não é com 200 ou 300 euros que consegue fazer a vida.   

PCM: Para finalizar, olhando para trás, fazia alguma coisa diferente na sua carreira? 

DS: Não fazia nada diferente, porque tudo o que eu fiz foi com dedicação. Dediquei-me sempre a 100%, acho que não fiz nada de mal e a decisão que eu tomei também não voltava atrás, porque fiz com pensamento, com pés e cabeça, não foi nada tomado precipitadamente, pensei bem no que deveria fazer.

Fiz tudo o que podia estar ao meu alcance, fui profissional, não cheguei mais à frente não foi por falta de qualidade ou por não poder. O meu objetivo passava por chegar a ciclista profissional e, mais tarde, poder correr no estrangeiro. Não foi possível, mas tudo o que podia fazer até esta data fiz, sempre dentro das minhas expectativas, sempre treinei bem, alimentei-me bem, por isso, não houve nada que fizesse mal.

Conheci malta sempre porreira nas equipas, tenho amigos de há vários anos das equipas que continuo a falar regularmente, por isso, não voltava a fazer nada diferente para trás.

Foto de Capa: Portuguese Cycling Magazine