Uma breve história…

Quando pensamos em ciclocrosse somos automaticamente remetidos para a Meca da modalidade, a Bélgica. É lá que o ciclocrosse atinge o seu apogeu máximo, com os circuitos míticos, os adeptos fervorosos e o clima agreste que por vezes condimenta as corridas. Mas, surpreendentemente, não é na Bélgica que o ciclocrosse tem as suas raízes. Não, a génese do ciclocrosse deu-se num país vizinho, mais propriamente em França, ainda nos finais do século XIX. Reza a lenda que certo dia, o soldado francês Daniel Gousseau substituiu o cavalo pela bicicleta para fazer a escolta de oficiais do exército, e foi de tal forma bem-sucedido na sua tarefa, que a bicicleta passou a ser incluída no treino das tropas francesas. Não muito depois, Gousseau passaria a organizar corridas de bicicletas, e foi ele o responsável pela realização do primeiro Campeonato Nacional de Ciclocrosse, no dia 16 de março de 1902. Na Bélgica, o primeiro campeão nacional da modalidade viria a ser coroado apenas em 1910, oito anos depois.
Nos anos que se seguiram, o ciclocrosse foi alastrando pelos países vizinhos da Europa, ganhando cada vez mais adeptos e praticantes. Assim, no ano de 1924, nasce nos arredores Paris o primeiro grande evento internacional de ciclocrosse, Le Critérium International de Cross-Country Cyclo-Pedéstre. Esta prova, levada a cabo anualmente, foi conquistando o seu espaço, ganhando cada vez mais prestígio, e acabou por se tornar, de forma não oficial, o Campeonato do Mundo da modalidade.

A evolução do ciclocrosse foi tal, que em 1950, a UCI, finalmente, reconheceu esta como uma disciplina de pleno direito, e, portanto, com a necessidade de organização de um Campeonato do Mundo oficial, com a atribuição da já famosa e icónica camisola do arco-íris ao vencedor da prova. E é nesse mesmo ano que pela primeira vez na história se realiza oficialmente o Campeonato do Mundo de Ciclocrosse, recebendo de herança o circuito do Critérium International. O primeiro a envergar o arco-íris no ciclocrosse foi o francês Jean Robic, que três anos antes fora o vencedor da Volta a França.
Nos 35 anos seguintes, podemos nomear sete ciclocrossistas que dominaram por completo a competição, e que entre si arrecadaram 32 camisolas do arco-íris: nos anos 50, era a França que continuava dona e senhora da modalidade, com Roger Rondeaux (51’, 52’ e 53’) e André Dufraisse (54’, 55’, 56’, 57’ e 58’) a não deram hipótese a mais ninguém de atingir a glória; grande parte dos anos 60 foram distribuídos entre o italiano Renato Longo (59’, 62’, 64’, 65’ e 67’) e o alemão Rolf Wolfshohl (60’, 61’ e 63’), até que no final da década começa a aparecer um jovem belga que se intromete no domínio do duo italo-germânico. O seu nome? Eric De Vlaeminck.

O apelido pode soar familiar, pois Eric era o irmão mais velho de outro De Vlaeminck, Roger, um dos melhores ciclistas de sempre, o codetentor do record de vitórias da Paris-Roubaix e também vencedor de um Mundial de Ciclocrosse, em 1975. Tal como Roger na estrada, Eric é considerado um dos melhores de sempre do ciclocrosse, um “monstro” que, para além de se ter tornado o primeiro belga campeão do mundo, também detém o record de vitórias na competição, com sete (!) camisolas do arco-íris envergadas, seis delas de forma consecutiva (66’, 68’, 69’, 70’, 71’, 72’ e 73’). Os 10 anos seguintes voltam a ser repartidos por dois contendores, o suíço Albert Zweifel, outro hall of famer do cross (76’, 77’, 78’, 79’ e 86’) e o belga Roland Liboton (80’, 82’, 83’ e 84’). Nos anos 90, ninguém conseguiu repetir vitórias nos Campeonatos do Mundo, mas há outro apelido famoso que surge várias vezes no pódio: Van der Poel. O pai de Mathieu, Adrie, bateu por quatro vezes consecutivas na trave (88’, 89’, 90’ e 91’), até vencer, finalmente, o seu título mundial, em 1996. No virar do milénio, são os belgas a dominar o panorama internacional, com nomes como Mario De Clercq (98’, 99’ e 02’), Bart Wellens (03’ e 04’), Eric Vevecken (06’ e 07’) e, o por muitos considerado o melhor ciclocrossista de todos os tempos, o Canibal Sven Nys (05’), que, apesar de tudo, nunca teve muita aptidão para o arco-íris. É por esta altura que começamos a ver campões do mundo com posterior sucesso na estrada, como Lars Boom (08’) e Zdenek Stybar (10’, 11’ e 14’), e pelo meio, Niel Albert ainda foi a tempo de carimbar por duas vezes o seu nome na lista dourada (09’ e 12’). O ano de 2013 marca o fim de uma era e o início de outra que todos nós conhecemos: é nesse ano que Nys vence pela segunda, e última vez, o Campeonato do Mundo. A partir daí, nasce para o ciclocrosse ao mais alto nível, e para o mundo do ciclismo, uma das maiores e mais bonitas rivalidades que o desporto velocipédico já conheceu: Mathieu Van der Poel e Wout Van Aert. Entre os dois, dividem sete dos últimos oitos Campeonatos do Mundo, com ligeira vantagem para o neerlandês (15’, 19’, 20’ e 21 vs 16’, 17’ e 18 de Van Aert). O ano passado, com a ausência deste dois gigantes, foi o outro elemento que compõe os Big 3 do ciclocrosse a arrecadar o título. Em Fayetteville, nos EUA, Tom Pidcock voou pela primeira vez em direção ao arco-íris.

Na vertente feminina, a história começa a ser contada apenas em 2000, em Sint-Michielsgestel, nos Países Baixos. O privilégio de ser a primeira campeã do mundo feminina de ciclocrosse coube à alemã Hanka Kupfernagel, que acabaria por vencer a competição mais duas vezes (01’ e 05’). De registar o ano de 2003, ano da presença portuguesa nos Campeonatos do Mundo, em Monopoli, através de Isabel Caetano. No entanto, falar de ciclocrosse feminino é falar de Marianne Vos. A neerlandesa, considerada a melhor ciclista de todos os tempos, detém o record de camisolas coloridas, com um total de oito (06’, 09’, 10’, 11’, 12’, 13’, 14’ e 22’). De salientar também o nome de Pauline Ferrand-Prevot, que, com a vitória em 2015, conseguiu arrecadar camisolas do arco-íris na estrada, BTT e ciclocrosse. Sanne Cant foi tricampeã entre os anos de 2017 e 2019; 2020 foi a vez de Ceylin Del Carmen Alvarado; Lucinda Brand conseguiu finalmente o ouro em 2021, e o ano passado, em Fayetteville, foi Vos, oito anos depois, a conquistar novamente o título mundial.