Na Vuelta a España, Ivo Oliveira tem sido um dos rostos mais visíveis do trabalho de equipa na UAE Team Emirates-XRG. Ao lado de João Almeida, o campeão nacional português vive uma das melhores temporadas da sua carreira, marcada por conquistas pessoais e pelo contributo inestimável para um possível feito histórico: a primeira vitória de um ciclista português numa grande volta.
Entre vitórias emocionantes, táticas debatidas e momentos de superação, Ivo abriu as portas do balneário da equipa e, em entrevista à Portuguese Cycling Magazine, partilhou o que tem vivido por dentro desta campanha memorável.
Portuguese Cycling Magazine (PCM): Boa tarde, Ivo. O teu verão começou com a conquista do campeonato nacional de estrada. O que significou para ti essa vitória e poderes levar a camisola de campeão nacional para as provas?
Ivo Oliveira (IO): Era um objetivo ganhar os nacionais, para, durante um ano inteiro, usar a camisola de campeão nacional. A partir do momento em que fui convocado para a Vuelta, foi um orgulho, porque és distinguido nas estradas; toda a gente te reconhece. Levas a bandeira ao peito e foi um momento especial ganhar e usá-la numa grande volta.
PCM: Qual é o balanço da Vuelta até agora?
IO: Estamos na luta pela classificação geral. Esse era sempre o objetivo mais importante. Depois, metade das etapas da Vuelta foram ganhas por nós. Ganhámos sete etapas e ganhámos aquela que, para mim, foi especial, que é o contrarrelógio por equipas, onde cada um tem a sua parte… Foi a primeira vitória da UAE num contrarrelógio por equipas numa grande volta, então foi um marco para a equipa. Se calhar havia uma ou outra etapa em que podíamos ter estado mais perto na geral com o João. Diria que podíamos ter ganho 20 ou 30 segundos, não mais. Para já, o balanço é muito positivo.
PCM: Como se prepara o contrarrelógio por equipas?
IO: Por acaso, não preparámos muito em equipa, porque cada um estava a treinar em sítios diferentes. Encontrámo-nos três ou quatro dias antes da Vuelta e estivemos sempre a treinar o contrarrelógio por equipas. É uma vertente muito específica, porque tens de englobar aqueles que são muitos bons e aqueles que não são tão bons. A regra é manter a velocidade, então tens de tirar sempre longo e não mais forte. Temos contrarrelogistas como o João, o Jay [Vine], o Mikkel [Bjerg], que têm um poderio enorme, e é muito fácil ‘matar’ quem vem atrás de nós. Percebendo bem como funciona a dinâmica, pode correr bem. Somos todos bastante completos no contrarrelógio. Cada um fez o seu e tudo correu perfeito nesse dia.
PCM: Essa foi a primeira de 7 vitórias da UAE na Vuelta e a equipa pode chegar às 100 na temporada. Quão importante é esse objetivo?
IO: Às 100, acho um bocado difícil…. Sendo matematicamente possível, podemos chegar. Mas o objetivo da equipa, agora que estamos tão perto, é mesmo ultrapassar a HTC [Team Columbia, com 85 vitórias em 2009]. É um marco que vai ficar na história do ciclismo: o maior número de vitórias profissionais numa equipa. As 100 podem acontecer, mas não é o objetivo. O objetivo é mesmo ultrapassar o recorde.
PCM: No último dia de descanso, soubemos que o Juan Ayuso vai deixar a equipa. Como soubeste e depois reagiste à notícia?
IO: Nós sabíamos os rumores. Mas soubemos todos ao mesmo tempo. Nesse dia estávamos a ter reunião no autocarro, eram 7 da tarde, saímos do autocarro e saíram as notícias no Twitter. O Juan obviamente já sabia que ia sair da equipa, mas nós não tínhamos a certeza. Para nós não foi surpresa, já sabíamos que era muito provável que ele saísse. Não foi uma novidade, mas foi novidade ter saído no dia de descanso. Ninguém sabia que ia sair nesse dia. Mas o dia correu exatamente igual, as corridas correram exatamente igual, por isso, para nós dá igual.
PCM: O Angliru foi provavelmente um dos melhores dias da tua carreira. Como viveste essa etapa?
IO: Foi especial, porque nesse dia consegui entrar na fuga. Entrar na fuga no dia do Angliru é complicado. Tive que entrar sozinho, porque já estavam 30 corredores na frente e eu fiquei num grupo de 4 corredores. Toda a gente desistiu, ninguém quis colaborar comigo, mas eu disse ‘não, tenho de chegar à frente de alguma maneira’. Sozinho, consegui chegar à fuga.
A única coisa que os diretores pediram foi tentar passar as duas subidas antes do Angliru o máximo na frente possível, para depois dar uma ajuda na entrada do Angliru. Foi exatamente isso que fiz. Passei as duas com muito esforço, porque as subidas eram muito inclinadas para as minha scaracterísticas.
Passei e depois o diretor encheu-me as costas de bidons, também meti os bidons na grade, e disse-me ‘estes bidons têm que ir para o João e o resto do pessoal’. Não tinha informações sobre a corrida, mas olhei para trás e vi que o Jay vinha com um ritmo intenso, então disse ‘tenho de fazer aqui 3/4 minutos’, o que conseguisse, porque já vinha completamente exausto. Quase 6 horas, 200 quilómetros…
Soube pelos espetadores que o João ganhou. Então fiquei mesmo feliz. Faltavam-me quatro quilómetros quando soube. Já nem me custou tanto o Angliru. Já tinha feito uma vez, mas desta vez ainda me custou menos, por saber que o João ganhou e também por a cada 100 metros termos um português com uma bandeira. Isso dá um alento top. Foi das melhores subidas que eu já fiz. Não me vou esquecer. Depois fizeram aquele vídeo que se tornou viral, a cantarem-me os parabéns, foi muito bonito. Os portugueses sabem apoiar! Não apoiam só os portugueses, também apoiam os outros, e isso é bonito de se ver.
No dia anterior, em jeito de brincadeira, disse por mais do que uma vez ao João: ‘Vê se me dás esta prenda de aniversário. É esta que eu quero. Não peço mais nada. Dá-me só esta prenda’, que era ganhar. E ele: ‘vou fazer por isso’. E fez!
PCM: Ontem, tiveste nova oportunidade de entrar numa fuga. As fugas de ciclistas da UAE têm sido muito discutidas entre os adeptos e pela imprensa. Como é que a equipa decide quem entra nas fugas e quem fica com o líder?
IO: Isso depende muito do perfil da etapa. Ontem, como sabíamos que era um sprint em fuga, eu tive essa oportunidade. Sou dos mais rápidos da equipa, então deram-me essa oportunidade para ir. Depois o Jay acabou por entrar e também foi bom, porque conseguiu pontuar nas duas montanhas. Decide-se quem vai para a fuga mediante o que queremos fazer na etapa. Naquela etapa que o Marc [Soler] ganhou, era suporto entrar eu e o Mikkel. Entrou o Mikkel e o Soler e depois ele acaba por ganhar a etapa. Mas foi perfeito, porque, a qualquer momento, o Soler estava preparado para meter o pé no chão e ajudar o João, caso ele precisasse de atacar.
Às vezes as pessoas a ver na televisão pensam ‘porque é que não arrancou?’ ou ‘porque é que a equipa…’ Muitas vezes depende do vento. O Soler teve luz verde para ir, porque entrou na subida com bastante margem. A subida tinha vento de frente e mesmo que o João conseguisse arrancar, não ia a lado nenhum. Porque com vento de frente, ninguém vai a lado nenhum… só o Tadej [Pogacar], e mesmo assim às vezes é complicado. As condições meteorológicas também importam muito.
Depende do perfil da etapa. Por exemplo, se tiver subidas no final ou que antecedem, convém ir um trepador. Imagina que tem três subidas antes da subida principal onde queremos fazer uma ação… convém eu entrar, porque na fuga, a uma velocidade mais reduzida, consigo passar. Se tentar passar com o pelotão e o pelotão acelerar, sou um bocado limitado nas subidas, vou acabar por ficar e não vou ser uma ajuda para a frente.
PCM: Perante o equilíbrio entre o João Almeida e o Vingegaard, o contrarrelógio individual pode ser determinante. Terás liberdade para fazer a tua corrida ou terás de poupar energia?
IO: É uma pergunta que ainda não sei responder. Normalmente, os diretores pedem aos ciclistas de trabalho para irem devagar nesses dias. Mas visto que é um contrarrelógio curto e no dia a seguir é uma etapa plana, posso tentar fazer um crono dentro das minhas capacidades. Depende do que vai acontecer até lá.

PCM: Até Madrid, teremos ainda duas etapas que podem terminar ao sprint. Contas discutir essas etapas?
IO: Na etapa depois do crono, posso tentar estar na frente. Acho que pode chegar uma fuga aí. Por norma, é difícil para as equipas dos sprinters controlarem na terceira semana. Não é bem um sprint, são 2/3 quilómetros a 3%, portanto não vai ser um sprint de todo. Mas acho que vai sair uma fuga grande, como saiu ontem, e se sair uma fuga grande, acho que posso ter liberdade nesse dia. Também é importante para manter a liderança por equipas. Já temos uma boa vantagem, mas temos de estar sempre atentos. Em Madrid, se a etapa for para a frente, também quero tentar discutir essa.
PCM: Por fim, qual é o fator mais determinante para o João Almeida e a UAE para vencerem a Vuelta?
IO: A única coisa que esperamos é que o João tenha sempre os dias como teve, porque tem vindo a crescer. Esperar que faça melhor no crono, que o Vingegaard tenha um dia mau e que sinta o cansaço da Volta à França. No Angliru, ele meteu o Vingegaard a sofrer. O Vingegaard da Volta à França teria atacado e tentado deixar o João para trás, mas já vimos que, nas últimas 2/3 montanhas, não foi isso que aconteceu; ele jogou na defensiva e nunca o tentou atacar. Isso já diz muita coisa. O João está em grande forma: cada dia que passa, eu vejo-o melhor. É esperar agora que continuemos a fazer o nosso trabalho, a tentar deixá-lo para trás, ele acabe por ter um dia mau e conseguimos vestir a vermelha.
No final, Ivo Oliveira revelou ainda o seu calendário depois da Vuelta: Campeonato do Mundo, no Ruanda, três clássicas em Itália e a Volta a Guangxi, na China. Assim espera finalizar uma época que já é histórica para o ciclismo português, também pelas suas quatro vitórias, mas que pode tornar-se ainda maior, com um triunfo inédito que não será dele, mas para o qual muito está a contribuir.