Não raras vezes no desporto, a política intromete-se. Se hoje em dia já não é tão notório, ou pelo menos, com uma influência tão direta e visível como nas “estórias do antigamente”, a política continua a ver e usar o desporto como forma de união, num exemplo positivo, ou de forma indireta servindo como limpeza de imagem de países, num exemplo mais negativo.
Na década de 1970, a Vuelta a España era um exemplo de influência política direta. Historicamente, a Vuelta é a Grande Volta pobre. Estabelecida bem depois do Tour e do Giro, em 1935, foi sendo intermitentemente realizada até 1955, ano desde que a prova tem edições ininterruptas, mas acabava, até meados dos anos 90, apenas uma semana antes do Giro começar, o que obrigava os corredores à decisão de Vuelta ou Giro, com a prova italiana a levar favoritismo dos grandes ciclistas e das grandes equipas, relegando a prova espanhola para uma competição entre as equipas ibéricas e algumas equipas de fora que muitas vezes vinham rodar a equipa ou testar os líderes do futuro.
Apesar disto tudo, Francisco Franco, o ditador espanhol, era aficionado pela modalidade, pelo que a Vuelta tem prioridade elevada para o estado espanhol, e alguns grandes nomes iam correr a grande prova por etapas do país vizinho, mesmo com a dominação histórica de ciclistas espanhóis. As startlists de 1973 e 1974, como exemplo, são luxuosas. Joaquim Agostinho, Luis Ocaña, Bernard Thévenet e até Eddy Merckx participariam em uma ou até nas duas edições desses dois anos, indicando uma prova que vinha em crescendo e que tentava competir com o Giro diretamente por “um lugar ao sol”.
No ano de 1975, em Espanha, tudo muda. Franco está doente há anos, mas em 1975 a condição piora e acaba por falecer, o que aumenta a instabilidade no país e todos os seus setores. Se a startlist de 1975 já tinha sido relativamente pobre, a de 1976 fica bastante aquém do que é esperado de uma Grande Volta, levando a Vuelta a sofrer imenso com a troca de regime e até em risco de ser extinta.
Para combater isto, a organização da prova e o governo espanhol desenham um plano: conseguir que o Campeão do Mundo corra, e ganhe, a prova espanhola em 1977 para assegurar a sua sobrevivência. O Campeão do Mundo de 1976 foi Freddy Maertens, um ciclista muito polivalente que se destacava nas provas de um dia, mas especialmente ao sprint e no contrarrelógio, ainda assim conseguindo passar facilmente subidas não duras. Talvez um ponto de comparação contemporâneo seja mesmo o melhor Wout van Aert. Para atrair Maertens, duas estratégias em paralelo foram desenhadas. A primeira, nunca comprovada, foi o pagamento de uma maquia considerável a Maertens para aparecer na starlist com a sua Flandria – se bem que Maertens tinha fama, confirmada pelo próprio, de manipular alguns resultados, ou até participar em provas desinteressantes a troco de boa compensação financeira -, e a segunda foi o desenho de uma Vuelta à sua imagem. 1 prólogo, dois contrarrelógios, muitas chegadas ao sprint com bonificações e apenas 3 etapas com chegada em alto, se bem que nunca duras o suficiente para fazer distanciar o belga o suficiente para pôr em risco a sua vitória.

Como mencionado atrás, a Vuelta corria risco de acabar, e a própria startlist o demonstra. Apenas 7 equipas de 10 ciclistas surgem para a prova espanhola, com a espanhola Teka de Joaquim Agostinho, Fernando Mendes e Miguel María Lasa com reais hipóteses de importunar o à partida triunfo de Maertens. A também espanhola Kas trazia o vencedor da versão de 1976 da Vuelta, José Pesarrodona, o terceiro lugar da mesma edição, José Nazabal, para além do lendário Domingo Perurena, mas a falta de montanhas afetava mais esta equipa espanhola que a Teka.
Também Luis Ocaña, na sua última época da carreira, aparece na startlist mas é já um nome que não se conta para ocupar os lugares mais elevados em Grandes Voltas.
O próprio Freddy Maertens percebia o que se passava e declarou “Só venho aqui para ganhar.” E ganhar foi o que fez. De forma histórica.

O prólogo, que se passou em Dehesa de Campamor, deu o mote para o que se iria ver nas estradas espanholas nas próximas três semanas. Maertens vence com 14 segundos sobre o seu colega Michel Pollentier, com Lasa já a 21 segundos. A etapa seguinte, ao sprint, o mesmo desfecho – Maertens a fazer o 2 em 2. A segunda etapa em linha era também ao sprint e o desfecho foi o mesmo. Maertens ampliada a sua vantagem e somava mais uma etapa. Era a terceira em três dias. Mas o dia seguinte, na chegada a Benidorm, duas montanhas de primeira categoria esperavam os ciclistas antes de uma chegada em plano. O ritmo duro da Teka e da Kas não chegou para quebrar o belga, que admitiu depois “ter que cerrar os dentes” para não perder a roda do pelotão – enquanto Ocaña e Agostinho disseram adeus à possibilidade de disputar a Vuelta -, não impedindo Maertens de chegar em terceiro na etapa, num dia que a fuga conseguiu se manter na frente e disputar a vitória entre si.

O dia seguinte, num contrarrelógio curto, foi de frenesim. Pollentier ganha a etapa, e Maertens perde 1 minuto para o colega de equipa e cerca de 30 segundos para todos os homens da geral, após chocar com um espetador no circuito à volta de Benidorm. Este terá sido mesmo um dos dias mais entusiasmante para a geral, e o único onde Freddy perdeu tempo para os rivais diretos. Antes do contrarrelógio seguinte, em Barcelona, seguem-se 5 etapas com chegada esperada ao sprint e uma etapa de média montanha. Na etapa de média montanha, a nona, Maertens e a sua equipa da Flandria trabalham o dia todo, até que um ataque duplo de Maertens e Pollentier parte a corrida, levando a decisão da etapa para um sprint em Salou, onde Maertens mais uma vez vence decisivamente. Na geral, ficaria definido quem iria lutar com o belga para a camisola de líder, pois apenas um grupo de 11 chega na frente, com os restantes favoritos a chegar a já 6 minutos da frente. Sobravam Lasa a 1:10 e Klaus-Peter Thaler a 2:09. Nas 5 chegadas ao sprint previamente mencionadas, Maertens ganha 4 e fica em segunda na outra, deixando o marcador em 8 etapas vencidas em 11 disputadas. O contrarrelógio no dia a seguir em Barcelona na parte da manhã, e a chegada ao Montjuic na parte da tarde, elevou estes números para 10 em 13, e deixava Lasa já a 1:47 do corredor belga. Mas faltava a última semana da Vuelta, e um mau dia nos últimos 8 dias da prova podiam pôr em xeque a vitória já declarada do belga.
A etapa 14 (ou 12, devido ao prólogo e à dupla etapa em Barcelona) trazia cinco ascensões, a última sendo na meta, a La Tossa de Montbui, e foi palco para os trepadores mais puros brilharem. Giuseppe Perleto, forte trepador italiano impôs-se a Agostinho nos metros finais, estando os dois escapados desde o início da etapa. Já a 2 minutos chegou o grupo restrito dos favoritos, com Maertens a se aguentar mais um dia sem demonstrar fraquezas.

O dia a seguir, ao sprint, teve o desfecho esperado, mais uma vitória de Maertens. O dia seguinte, na chegada a Monzón, foi permitido a uma fuga disputar a vitória entre si, enquanto Maertens nem disputou o sprint no grupo principal, poupando forças para o dia seguinte, a difícil etapa com chegada ao Formigal, onde Freddy tem um bom dia, chegando em sexto lugar, mas mais importante, ganhando tempo aos mais diretos rivais, ficando na geral Lasa a 2:20 e Thaler a 3:04. O dia a seguir seria mais uma para Maertens, que ganharia a sua décima segunda etapa na Vuelta. Nos dias seguintes, foi permitido pela equipa do líder algumas fugas conquistarem etapas, com a vantagem na geral a não mudar de forma significativa.

A última etapa, uma chegada a Miranda de Ebro acabou com o desfecho esperado, mais uma vitória de Maertens num dia em que a equipa da Teka atacou em bloco com a equipa da Flandria, tendo a equipa da Teka conseguido retirar à Kas a liderança da classificação das equipas. Com a décima terceira vitória de Maertens em etapas em linhas, o tempo ganho em bonificações na meta – tão bem planeadas pela organização para garantir a vitória do belga – fixa-se em 2:10, excluindo tempo ganho nas bonificações das metas volantes, classificação que Freddy também dominou. No final, Maertens ganha a Vuelta com 2:51 sobre Lasa e 3:23 sobre Thaler, uma vantagem “falsa” para as diferenças na estrada. Mas acima de tudo, fica o recorde de etapas conquistadas numa edição de uma Grande Volta: 13 etapas em 21 disputadas. Não esquecendo também a camisola laranja de líder vestida do primeiro ao último dia. Um domínio que fica para a História.
