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Um dia com a equipa belga Lotto na Volta à Catalunha

A Volta à Catalunha não é uma novidade para mim. Aliás, foi uma das primeiras corridas World Tour que assisti em pessoa – a Etapa 7, com o mítico Circuito de Montjuïc em Barcelona. Foi assim em 2023 e, em 2025, voltei a esta corrida para passar o dia com a equipa belga Lotto.

English Version – A day with the Belgian Lotto team at the Volta Ciclista a Catalunya

Lotto na Volta à Catalunha. Foto: Juliana Reis

A Lotto é a equipa de ciclismo mais antiga ainda em atividade. Fundada em 1985, já teve vários nomes e patrocinadores, mas a lotaria nacional da Bélgica – Lotto – foi sempre o principal. A formação belga viu passar pela sua estrutura muitos ciclistas. Thomas de Gendt foi um dos grandes nomes que escolheu esta equipa, tendo-se reformado no final da época passada. Atualmente, tem Arnaud de Lie para as clássicas e sprints e, nesta Volta à Catalunha, apostou em Lennert Van Eetvelt.

Lennert Van Eetvelt na etapa 1. Foto: Juliana Reis

A corrida começou com muita chuva, seguida de ventos fortes que até levaram ao encurtamento da etapa 4, e finalmente o sol na última etapa em Barcelona. À partida, Van Eetvelt era o foco da imprensa. O atleta que já ganhou o UAE Tour confessou-se “irritado” com a sua prestação, mas ainda mais determinado a melhorá-la. “Hoje será difícil fazer diferenças para a geral, mas vamos tentar estar na frente”, traçou assim o objetivo daquele dia.

Compromissos mediáticos. Foto: Juliana Reis

A etapa de Barcelona foi mais curta do que em anos anteriores. Porém, mesmo 88 quilómetros conseguem fazer justiça ao circuito de Montjuic, que foi mundial em 1973 e 1986 e olímpico em 1992. A volta em si são cerca de 8 quilómetros, marcados pela subida ao Castelo e descida em direção ao Estádio Olímpico. Assenta muito bem a Van Eetvelt e à Lotto, por isso tinham um plano. Mario Aerts, o diretor desportivo, deixou isso claro: “Hoje é um bom dia para ele, podemos até conseguir a vitória na etapa. Ele está entre os três melhores trepadores da corrida. Hoje as subidas são mais explosivas, mas podemos tentar.”

Mario Aerts, diretor desportivo. Foto: Juliana Reis

Mario já faz parte da mobília: está nesta casa há mais de 26 anos, primeiro como ciclista e atualmente como diretor desportivo. O ‘ADN Lotto’ está inscrito nas suas células, ele só tem de incorporá-lo em estratégias de corrida. “O foco está no Arnaud de Lie e, para as corridas por etapas, no Van Eetvelt; esperamos conseguir pontos UCI com eles”, explica.

A aposta é assim na juventude. Agora como sempre, a equipa desenvolve jovens ciclistas para depois colher os seus frutos no escalão profissional. “Vários nomes vêm da nossa equipa de desenvolvimento. Temos um bom sistema e já provámos que funciona.” Porém, Mario deixa uma ressalva: “Atualmente ainda estamos a formar os nossos líderes. Não é possível esperar tantos resultados, uma vez que faz parte do processo.” Um processo que ele define como “gerir a equipa para se adaptar aos atletas.”

Preparação da partida. Foto: Juliana Reis

Para lutar por uma classificação geral é preciso gerir muitos fatores, e houve apenas um que Van Eetvelt não conseguiu dominar na semana catalã: “Foi pena o Lennert ter perdido algum tempo na etapa 6, foi difícil com o vento, mas acredito que com um pouco mais de confiança podíamos estar no pódio. Ele é um dos melhores trepadores; faltou a confiança e o acreditar que podia lá chegar”, explicou Mario.

O vento levou a oportunidade, mas a confiança teria permitido navegar as condições. Por isso, o diretor desportivo preocupa-se em construí-la nos jovens: “O desporto tem mudado muito nos últimos anos. A parte mental tem-se tornado cada vez mais importante, especialmente para os mais jovens. Os atletas pensam de forma diferente comparativamente à 15 anos atrás”, admite. “As corridas são mais atrativas, há imensos nomes que trazem o espetáculo, Tadej Pogačar, Wout van Aert, Mathieu van der Poel. É um estilo diferente”, acrescenta o diretor desportivo.

Quando falou comigo, Mario já tinha definido a estratégia para aquele dia, mas aguardava pelo regresso dos corredores para apresentá-la: “Todos os dias são diferentes, é desafiante. Os atletas mais novos têm muita personalidade e temos de os ajudar a crescer no desporto”, concluiu.

Quando os seis – Henri Vandenabeele abandonou na etapa 3 – voltaram para junto do autocarro, Mario levou-os para dentro. Estava na hora de afinar os últimos detalhes da estratégia do diretor. Foi nesse momento que me cruzei com o médico da equipa, Matthias Bertels.

Matthias Bertels, médico. Foto: Juliana Reis

Matthias está a cumprir o seu primeiro ano na Lotto. Especializado em medicina geral e também em medicina desportiva, a sua família está ligada ao ciclismo; ele próprio praticou ciclismo e assim, não conseguiu manter-se afastado do desporto. “Estou muito entusiasmado por fazer parte de uma equipa jovem e dinâmica”, admitiu.

O seu papel passa por acompanhar os atletas, em comunicação direta, com o intuito de garantir a sua saúde em todos os momentos. Mas assim, os momentos em que ele está mais ativo são os piores para a equipa: “O nosso papel é crucial quando há quedas ou atletas doentes; somos um ‘seguro’ para a equipa. Quando não somos precisos, é bom sinal.”

Além de trabalhar com os atletas, ele colabora com a equipa de performance, acompanhando os desenvolvimentos científicos e identificando quais os podem ajudar a melhorar. “Estamos sempre à procura da melhor forma de apoiar os nossos atletas”, resumiu.

Staff da Lotto. Foto: Juliana Reis

A ansiedade cresce na Plaza de España. Está quase na hora da partida e todos os membros do staff trabalham para tudo ficar pronto. Mas antes de ir com o staff da equipa para a zona de abastecimento, no sopé da colina de Montjuic, encontrei o motorista e também massagista da equipa, Patrice Hemroulle.

Patrice, que preparava os abastecimentos, é conhecido como ‘Tintin’. Ele é membro da equipa desde 2020 e descreve o seu trabalho de forma muito peculiar: “O meu trabalho na equipa é ser a mãe deles (atletas), fazemos tudo para eles, tomamos conta deles”, afirma com boa disposição.

Em dia de corrida, Tintin não tem descanso. Acorda às 7 da manhã  para preparar os bidons para a etapa, a comida para atletas e staff e o carro para o percurso. Com tudo preparado, segui com o restante staff da equipa para o ponto de abastecimento.

Patrice Hemroulle, soigneur. Foto: Juliana Reis

Depois da corrida, começa a corrida para nós.” É desta forma que Patrice descreve o seu dia na sua vertente principal: massagista. Após cada corrida, ele tem de chegar ao hotel o mais rápido possível, lavar a roupa dos atletas e, posteriormente, fazer as massagens aos atletas, que marcam o início da recuperação. É um ciclo virtuoso: “Nós estamos ocupados desde as 7 da manhã até às 21h. São dias longos para nós, mas tentamos ao máximo facilitar a vida aos atletas!

Ele está sempre lá para os atletas e desempenha um papel crucial na sua performance. Contudo, isso implica que não passe muito tempo em casa: “Este ano já fizemos 80 mil quilómetros.” Porém, ele admite que também que aproveita bem o final da época.O trabalho dos atletas é amplamente celebrado, mas a sua performance está diretamente vinculada ao trabalho dos diversos elementos da equipa técnica.

A caminho de Montjuic. Foto: Juliana Reis

Os ciclistas passam pela primeira vez em Montjuic. A fuga tinha uma vantagem importante, mas o pelotão começa a fragmentar-se. Há cada vez mais espaço entre ciclistas, até que já não estamos no pelotão. Na parte de trás na corrida, o sofrimento já era notório nas suas caras, e cada passagem por aquele local acentuou-as ainda mais.

Lennert Van Eetvelt em Montjuic. Foto: Juliana Reis

Foram precisas mais algumas passagens para Primož Roglic (Red Bull-BORA-hansgrohe) jogar a sua cartada. Ninguém seguia com o esloveno quando passou por mim no alto do Castelo. Lennert Van Eetvelt cumpriu a estratégia de Mario, mas a corrida não foi feita de sorte. Foi feita de força, e nem ele nem ninguém teve pernas para apanhar o campeão da Catalunha. 

Chegada a Barcelona. Foto: Juliana Reis

Ainda que não soubesse na altura, o jovem da Lotto tinha o seu próprio ás na manga. Ele deixou os outros candidatos nas proximidades do Estádio Olímpico e cruzou a meta na 3.ª posição. Não é certo que a irritação tenha desaparecido, porque um verdadeiro campeão raramente fica satisfeito. Em todo o caso, o 8º lugar de Van Eetvelt na Volta à Catalunha é o melhor indicador do trabalho dele, dos colegas e de toda a equipa da Lotto.

Por Juliana Reis