A viragem do meio dos anos 70, no ciclismo, trouxe várias mudanças. Eddy Merckx, considerado quase unanimemente o melhor ciclista de sempre, passou de ser o principal favorito de todas as provas onde entrava e passava a ser “apenas” um dos candidatos à vitória. Tudo começou na icónica e infame etapa 14 do Tour de France de 1975, com chegada ao Puy de Dôme, onde o belga terá levado um murro de um espetador no rim direito – levando-o a perder a liderança da prova francesa no dia seguinte -, e começando também, naturalmente, a perder as suas capacidades físicas superiores à concorrência. Com isto, vários nomes aproveitaram para aumentar os seus currículos, tanto a nível de Grandes Voltas como de clássicas e Monumentos. Nomes como Joop Zoetemelk, Bernard Thévenet, Lucien van Impe, Felice Gimondi, Francesco Moser, Jan Raas, Bernard Hinault ou Roger de Vlaeminck tornaram-se maiores. Este último é o vencedor da edição de 1977 da Volta à Flandres (ou Ronde van Vlaanderen), a versão mais conhecida e polémica da corrida belga, e que tornou de Vlaeminck no terceiro, e até hoje o último, vencedor de todos os Monumentos do ciclismo (depois de Rik Van Looy, e, obviamente, Eddy Merckx).
A Ronde de 1977 trouxe, pelo segundo ano consecutivo, a subida ao Koppenberg (agora uma das icónicas subida da prova, onde as imagens anuais dos ciclistas a levarem as suas bicicletas à mão se torna uma atração dentro da própria prova). Porem, as regras haviam mudado – as trocas de bicicleta na subida tornaram-se proibidas, algo anunciado numa reunião na noite anterior ao dia de prova pelo diretor da prova aos diretores desportivos das equipas presentes.

Dentro dos favoritos há um nome que até agora não foi mencionado, e que acaba a dar o nome ao artigo de hoje, o belga Freddy Maertens. Um dos melhores sprinters e classicómanos da sua geração, era, tal como o resto do pelotão, um rival acérrimo do “Canibal” Merckx, sendo que ainda quatro anos antes, em 1973 nos mundiais de Barcelona, a recusa em trabalhar em equipa dos dois belgas levou à vitória do italiano Felice Gimondi. Em 1976, dificuldades não houve para Maertens, que com apenas 24 anos se tornou campeão do mundo, e chegava a esta Ronde como um dos favoritos à vitória, depois de ter ganho várias provas importantes como o Paris – Nice, a Setmana Catalana , a Omloop Het Volk (hoje Omloop Nieuwsblad) e ainda um quinto lugar na Milano – San Remo.
Quando a corrida começou, Merckx, como várias vezes tinha feito antes, tentou ditar as regras da prova. Atacou de longe, e apenas uma dúzia de ciclistas o manteve debaixo de olho. Desta dúzia, apenas Roger de Vlaeminck e Freddy Maertens conseguiram ultrapassar Merckx – que acabaria por desistir da prova quando se apercebeu que não ganharia -, e se isolaram até o final. Um final anticlimático. Quando a vantagem dos dois ciclistas cresceu para números confortáveis, Roger de Vlaeminck recusou-se a passar pela frente e sprintou na meta para uma vitória tranquila que Freddy Maertens pareceu nem tentar disputar. Muitos espetadores, furiosos, contestaram o que viram. De Vlaeminck foi insultado pela sua maneira covarde de correr, enquanto este dizia “não querer saber das opiniões das pessoas” e “que apenas o meu nome irá ficar gravado como vencedor desta edição”.

O que à chegada à meta não era de conhecimento geral é que Freddy Maertens já havia sido, há muito, desqualificado de prova, pois durante a ascensão do Koppenberg acabou por infringir as regras e trocou de bicicleta. O porquê de ter feito é onde não há consenso e torna toda esta história ainda mais entusiasmante. Algumas fontes dizem que teve um furo ou outro problema mecânico, outras falam em trocar para uma bicicleta mais adequada para o que restava da prova… O Het Nieuwsblad, jornal oficial da prova e ainda hoje um dos mais prestigiados da Flandres, diz que Maertens terá caído durante a dura subida, trocado de bicicleta e teria sido empurrado subida acima pela equipa e espetadores. Fala-se ainda que o diretor desportivo da equipa de Maertens, a Flandria – Velda, não terá aparecido na reunião da noite anterior e não saberia da “nova” regra imposta. Seja como for, o que se sabe é que Freddy Maertens foi desqualificado pela organização da prova e tentou desistir. Guillaume Driessens, o então diretor da sua equipa, não o permitiu e convenceu-o a ficar até ao fim para efeitos de publicidade. Maertens fala noutro incentivo, pois Roger de Vlaeminck terá lhe prometido 300 mil francos belgas (cerca de 25.000 € aos dias de hoje e tendo em conta a inflação), para trabalhar para ele o resto da prova, algo que de Vlaeminck recusa ter feito e que simplesmente teria jogado com a força superior no sprint final contra Maertens. Na Bélgica, há ainda quem encontre razão para o esforço brutal de Maertens numa possível vingança contra Eddy Merckx, garantindo a derrota do super-campeão e assinando a confirmação do seu declínio.
Seja como for, e teorias da conspiração à parte, fosse qual fosse o desfecho caso a desqualificação não tivesse acontecido, poucos dias depois da prova Maertens acusa positivo a substâncias proibidas e é retirado, de forma definitiva, o seu nome da prova. O terceiro lugar, Walter Planckaert, também acusa positivo a doping e perde o seu lugar no pódio.
De forma quase irónica e trocista com De Vlaeminck, que havia dito que apenas o seu nome iria contar como vencedor da edição de 1977 da Ronde, Maertens foi acolhido como herói pelos seus conterrâneos belgas, que o consideram, o ‘de facto‘ vencedor desse ano. No museu da Ronde, na cidade de Oudenaarde, uma série de paralelos, com os nomes de todos os vencedores e as suas edições encontra-se em disposição. Estes paralelos formam uma linha relativamente uniforme de alturas semelhantes, não permitindo o destaque de uma edição ou vencedor em relação a outro. A exceção, claro está, é Freddy Maertens (que nunca venceu uma edição da Ronde) colocado, subtilmente, por cima de Roger De Vlaeminck, com a inscrição “Freddy Maertens – 1977 – Vencedor Moral”.
