Categories Uncategorized

Tour de France 1975: O início do fim 

Quando no dia 13 de julho de 1975 o pelotão da edição desse ano do Tour de France partiu para a estrada, decerto não esperariam que esse dia seria a última vez que Eddy Merckx vestiria a camisola amarela na Grand Boucle. O ultra campeão belga, para muitos – autor do artigo incluído – o melhor ciclista de todos os tempos, tinha entrado há um mês nos 30 anos de idade, e apesar de na altura que esta estória acontece ser quase um sinal de “velhice” desportiva que hoje em dia não é tão alarmante, Merckx não mostrava ainda sinais de decaimento das suas capacidades físicas, apesar do próprio começar a sofrer de algumas doenças e o acumular de anos de competição o começar a afetar, como dito pelo próprio. Vindo de muitas vitórias na temporada, com especial destaque para a “sua” Milano – San Remo (recordista da prova com 7 vitórias) e a última das suas 5 Liége – Bastogne – Liége (onde também é recordista de vitórias), o “Canibal” Merckx não tinha ainda conquistado uma prova por etapas nesse ano, tendo abdicado pela primeira vez de 1971 de correr no Giro de Italia (onde é também recordista de vitórias da geral da prova italiana) devido a doença que o afetou toda a primavera. 

Chegado ao Tour de France de 1975, Eddy Merckx é, apesar de tudo, o grande favorito à vitória, ameaçando roubar o recorde de vitórias da prova francesa ao também francês Jacques Anquetil. Entre outros nomes que se encontravam na startlist, no lote de favoritos encontram-se o belga Lucien van Impe – que já havia fechado em 3º, 4º e 5º em 3 das últimas 4 edições, sendo um dos melhores trepadores de sempre  com 6 camisolas da montanha no Tour –, o neerlandês Joop Zoetemelk – que já havia fechado duas vezes em 2º lugar do Tour –, o francês Bernard Thévenet – que entrava no auge da sua carreira e já tinha aparecido no pódio final tanto do Tour como da Vuelta a España –, o espanhol Luis Ocaña – que havia vencido em 1973 a prova francesa –, ou até o italiano Felice Gimondi, Joaquim Agostinho ou o francês Raymond Poulidor, conhecido pelos seus pódios quase infinitos sem uma vitória na geral da prova francesa. Uma startlist de luxo, como esperado e desejado de uma prova também ela de luxo. 

O percurso da edição de 1975 do Tour de France. Retirado de ledicodutour.com

O Tour de France de 1975 arrancou com um prólogo em Charleroi, território belga, onde o italiano Francesco Moser venceu a sua primeira de duas etapas no Tour, seguido de pertíssimo por Merckx a dois segundos. O “Canibal” começava cedo a ganhar tempo à oposição, com Lucien van Impe a fazer 3º lugar, mas já com um défice de 12 segundos para o seu compatriota. Entre esta etapa e a etapa 13 – nota: era nesta altura muito comum a existência de duas etapas no mesmo dia, por norma duas etapas em linha curtas, ou então uma etapa em linha plana de manhã e um contrarrelógio de tarde, pelo que a etapa 13 irá aparecer online como a etapa 10 em vários meios – Eddy Merckx vencera dois contrarrelógios, e ainda não havia perdido tempo para a competição nas etapas mais duras, costumando chegar integrado tranquilamente nos grupos que disputavam as etapas, chegando ao ponto intermédio da prova francesa com 1:39 de avanço sobre Francesco Moser, que não era visto como candidato à geral, e já com 2:20 de Bernard Thévénet, apesar de Merckx estar mais focado em Zoetemelk, que se encontra a quase 5 minutos mas sempre perigoso, especialmente entrando a prova nos Pirinéus. 

Francesco Moser, à esquerda, e Eddy Merckx, à direita e de amarelo, à partida para uma das etapas do Tour de 1975. Retirado de Pinterest

Apesar de algumas movimentações, a etapa 13 não era dura o suficiente e acabou por não trazer mudanças na geral. Felice Gimondi conseguiu se superiorizar aos favoritos da prova francesa e chegou isolado a Pau. 

Mas o Tour só iria aquecer verdadeiramente e começar a defesa do Canibal face aos restantes no dia seguinte, a etapa 14, na chegada ao Pla d’Adet, em Saint – Lary – Soulan. Thévenet atacou, Zoetemelk seguiu, Merckx e Van Impe ficaram a controlar à distância e os restantes favoritos ficaram fora da luta. No final, Zoetemelk distancia o francês e ganha a etapa, com Thévenet a chegar a 6 segundos do neerlandês, mas fundamentalmente ganham respetivamente 55 e 49 segundos a Merckx, que declara que Thévenet é o seu maior rival na geral e quem vai seguir no resto da prova. 

As duas etapas seguintes não trouxeram ação e mudanças na geral, mas a etapa 17 prometia ação. Uma etapa simples, mas com a duríssima chegada ao Puy de Dôme, a emblemática subida do Maciço Central, e onde de forma surpreendente o “Canibal” costumava se dar historicamente mal, era vista como uma das etapas “tira teimas” para medir a forma dos favoritos antes do arranque para a última semana, visto o dia seguinte, o 12 de julho, ser o último dia de descanso desta edição do Tour. Na parte dura da subida final encontramos os quatro ominpresentes desta história, e também os mais fortes da geral juntos, num grupo comandado pelo camisola amarela até cerca de 5 quilómetros do fim, onde Thévenet arranca com Van Impe, que vestia a camisola de liderança da montanha, preferindo Merckx seguir ao seu ritmo, sempre com o duo da frente a uma distância controlada. Na frente, Van Impe descola o francês da sua roda ainda a 1 quilómetro do fim, deixando-o à mercê de Merckx, que, entretanto, vai reduzindo distâncias e aproxima-se rapidamente da frente de corrida com Zoetemelk na roda, e quando está prestes a encostar em Thévenet acontece o momento seminal e que dá o título à estória. Um espetador, posteriormente identificado, que se encontra na estrada estende o braço e dá um murro na barriga de Merckx, que imediatamente abranda o ritmo e sofre para chegar à meta, acompanhando de Joop Zoetemelk,  mas 49 segundos depois de Van Impe e a 34 de Thévenet.  

Thévenet, na frente, e Van Impe, com a camisola da montanha, na lendária subida do Puy de Dôme. Retirado de bikeraceinfo.com

Um murro na barriga, na zona do fígado, incapacitou o belga, que os relatos dizem que não conseguiu dormir durante alguns dos dias que restavam na Grande Volta francesa e preocupavam toda a formação e estrutura da Molteni, equipa que se confundia com Merckx durante os anos áureos da carreira do belga.  

Eddy Merckx em dores, após o murro na zona do fígado provocado por um espetador. Retirado de cyclist.co.uk

A etapa 18, após o dia de descanso, levou os franceses para a estrada. Com um Merckx enfraquecido, Thévenet o mais perto na geral do belga a menos de 1 minuto – Zoetemelk, em terceiro, encontrava-se a 3:54 do “Canibal” – a chegada a Pra-Loup, que continha 5 subidas categorizadas, era visto como o dia de Thévenet. Após as primeiras 3 subidas, que foram realizadas a um ritmo alto, os 5 homens da geral mais fortes – Merckx, Thévenet, Zoetemelk, Van Impe e Gimondi – chegam isolados à subida do Col d’Allos, com Thévenet a testar continuadamente o líder da geral ao longo da dura subida. Porém, e de forma surpreendente, foi Merckx a atacar a 1 quilómetro do alto da subida e realizar a descida de forma isolada, entrando na curta subida a Pra-Loup, de 6 quilómetros, com uma vantagem saudável de cerca de 2 minutos sobre o grupo perseguidor e o sonho do belga começava a se tornar o pesadelo dos franceses. Atrás, Gimondi ataca e segue isolado ao encalce do belga. Na frente, Merckx perde o ritmo que antes leva e fica esgotado, tal como se levasse novamente um murro no fígado. Sendo alcançado por cada um dos restantes favoritos, Merckx diz adeus à sua maillot jaune que sempre pareceu nunca querer sair das suas costas, e após chegar com um défice de 1:56 sobre Thévenet – que se torna no herói dos franceses –, declara que o Tour acabou e que não terá nada mais para dar. A etapa seguinte, uma curta etapa com duas montanhas duríssimas no meio dos seus 107 quilómetros de extensão – o Col de Vars e o Col d’Izoard – serviu para sentenciar de vez a edição de 1975 da maior prova do calendário mundial, com o francês camisola amarela a vencer de forma autoritária com um avanço de 2:22 sobre um grupo encabeçado por Merckx após se isolar no Col d’Izoard. 

Bernard Thévenet a subir o Col d’Izoard. Escondido atrás do camisola amarela, encontra-se Joop Zoetemelk. Retirado de velo-pages.com

Com a geral decidida, ainda havia tempo para mais uma situação prejudicial para a saúde de Merckx, que mais tarde admitiria que ter terminado o Tour de 1975 foi um erro. No caminho para o início da etapa 20, o belga colide com o dinamarquês Ole Ritter, partindo o queixo e o osso zigomático, obrigando-o a consumir apenas líquidos. Merckx luta pela vitória até onde seria possível, recuperando ainda alguns segundos a Thévenet, e quando confrontando com a pergunta de “porquê não desistir?”, Merckx responderia sempre com “tenho que honrar a corrida e a camisola [amarela]”. 

Após o Tour de 1975, Merckx voltaria a correr passado um mês do fim da prova francesa, algo raro nos calendários do belga, que fazia regularmente mais de 100 dias em competição por ano, mas nunca voltaria a sua versão que dominou o ciclismo a seu bel-prazer entre 1969 e 1974. O belga nunca se apoiou em todos os acontecimentos da edição de 1975 da Grand Boucle para justificar a sua perda de força, dizendo sempre que já se sentia mais fraco que antes – sendo que é importante realçar que o facto de Merckx sequer correr, após um acidente gravíssimo numa corrida de pista em 1969 que o deixou com dores de costas permanentes e vitimizou Fernand Wambst, já era em si um milagre -, que começava a ter pequenas lesões e doenças que já o afetavam e não o permitiam preparar as provas como gostava, mas a História diz-nos que o ciclista que entrava no Tour de 1975 com 30 anos com o sonho e a expetativa do 6º Tour, em março de 1978 estava reformado, aos 32 anos, apenas somando mais uma Milano – San Remo ao (gigante) palmarés e uma série de provas menores. Nunca se saberá o quanto verdadeiramente afetou o murro e, posteriormente, os ossos da cara partida, mas sempre que vemos o Puy de Dôme, é possível apontar exatamente onde a carreira do mais vitorioso ciclista de sempre começou a terminar. 

Thévenet, à frente, e Merckx com a sua última “maillot jaune” a subir Pra-Loup. Retirado de capovelo.com