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Reis das Ardenas: Davide Rebellin e Philippe Gilbert

A semana das clássicas das Ardenas é uma das mais esperadas do ano. Após várias semanas com clássicas e semi clássicas em que o paralelo é o atrativo principal, passam a ser as subidas curtas e explosivas a ser donas de toda a atenção dos espetadores. As três corridas principais dentro deste tipo são a Amstel Gold Race – corrida desde 1966 -, a Flèche Wallonne – desde 1936 -, e “La Doyenne“, a Liége – Bastogne – Liége – que é corrida desde 1892 e é uma das corridas mais antigas do calendário. Apesar de ser corrida nos Países Baixos, e não ser da região das Ardenas, a Amstel Gold Race “abre” oficialmente a semana das Ardenas, com várias pessoas a também considerarem a De Brabantse Pijl – La Flèche Brabançonne uma prova que se insere nesta semana e a verdadeira prova de abertura, apesar de ter menor importância que as restantes três.

Ao longo das décadas, vários ciclistas ganharam as três clássicas, por norma, em anos separados. Na lista de nomes que venceu as três incluem-se Eddy Merckx (surpreende?), Bernard Hinault, Michele Bartoli, Danilo Di Luca, Tadej Pogacar e os dois nomes do título, Davide Rebellin e Philipe Gilbert. Porque se destacam estes dois nomes? Porque ganharam as 3 provas no mesmo ano, Rebellin em 2004 e Gilbert em 2011. Vamos recordar as vitórias.

2004: O renascimento de Rebellin

Em 2004, Davide Rebellin encontrava-se (achava-se na altura) nas últimas pernas da sua carreira. O ciclista da Gerolsteiner tinha 32 anos, e apesar de muitos bons resultados, especialmente em provas de um dia, ao longo da carreira, faltavam-lhe grandes vitórias. Para juntar a isso, pouco após a viragem do século, problemas físicos e um parasita intestinal afetavam a performance do italiano. Vencedor de muitas provas, especialmente menores, mas com um Tirreno – Adriatico, uma Clássica de San Sebastián e uma etapa no Giro d’Italia, não se pode dizer que o currículo de Rebellin fosse mau, mas tendo em conta os seus resultados em provas como a Liége – Bastogne – Liége (2 pódios) ou o Giro di Lombardia (mais um pódio), assim como quase infindáveis pódios em outras provas de um dia, ficava a faltar algo no CV do italiano que correu até 2022. O ano de consagração, e até pagamento com juros de todos os azares anteriores na sua carreira, chegou com estrondo, dominando a semana das Ardenas em 2004.

Na Amstel Gold Race, que na altura acabava na curta, mas muito dura, subida ao Cauberg, várias movimentações permitiram isolar Davide Rebellin com Michael Boogerd (Rabobank), que deixaram para trás os seus colegas de fuga Danilo Di Luca (Saeco), Peter van Petegem (Lotto), Paolo Bettini (Quickstep – Davitamon) e Mathias Kessler (T-Mobile). Na subida final, Rebellin controlou Boogerd, que atacou primeiro, mas apenas levou o italiano à linha de meta que com relativa facilidade ultrapassou o ciclista neerlandês nos últimos 50 metros.

A segunda das provas das Ardenas é uma prova com uma identidade muito vincada. A dura chegada ao Mur de Huy costuma desencorajar ataques de longe, levando a que o teste de potência dos ciclistas seja a atração da prova, sendo que muitas vezes a prova é chamada como o “Campeonato do Mundo dos Puncheurs“, quase como a Scheldeprijs é o “Campeonato do Mundo dos Sprinters”. Em Huy, alguns dos protagonistas repetem-se. Boogerd não participou, mas Kessler iniciou as hostilidades entre os favoritos, Di Luca contra ataca a iniciativa do alemão, levando na roda Rebellin, que sentindo o seu compatriota com pouca capacidade atacou na parte final, e mais plana, da subida para a vitória.

Na Liége – Bastogne – Liége, a corrida desenrolou-se de forma semelhante à Amstel Gold Race, chegando, após o icónico Côte de Saint – Nicolas, e a poucos quilómetros do fim do Monumento belga, um grupo de três prontos para discutir a prova. Boogerd e Rebellin, novamente, mas agora com o cazaque Alexandre Vinokourov (T-Mobile) na frente da corrida. Na altura, a corrida acabava em Ans, numa curta subida, mas que no final de quase 260 quilómetros de corrida costumava criar diferenças. Vinokourov e Boogerd atacaram(-se) algumas vezes, mas acabavam sempre a se anular, enquanto Rebellin se tentava resguardar ao máximo para o sprint. Repetindo-se o cenário do Amstel, Boogerd ataca, mas acaba a apenas levar Rebellin na roda, que a 150 metros do fim ataca para a maior vitória da sua carreira.

Nos media internacionais, falava-se do renascimento de Rebellin, e no que mais poderia alcançar ainda no (esperava-se) pouco que faltava da carreira. Ganharia, nos anos seguintes, mais duas Flèche Wallonne, um Paris – Nice e mais provas menores, até se retirar em 2022, 18 anos depois do ano da sua masterclass nas Ardenas. Faleceria, também, em 2022, após ser atropelado enquanto treinava. Que descanse em paz.

Davide Rebellin fez a Tripla das Ardenas em 2004. Foto: Getty Images

2011: O ano de Gilbert

Ao contrário de Rebellin, o ano de 2011 chega mesmo no meio do auge da carreira de PhilGil. Com 28 anos, e já vencedor da edição de 2010 da Amstel Gold Race, e já com dois Giro di Lombardia, várias etapas em Grand Tours e uma miríade de provas de um dia no seu currículo, de variado prestígio, Gilbert chegava à semana mais especial da sua carreira com uma vitória na Volta ao Algarve, a Strade Bianche, uma vitória no Tirreno – Adriatico, um terceiro lugar na Milano – San Remo e um top-10 na Ronde van Vlaanderen. Mais indicador da sua forma foi a vitória na De Brabantse Pijl, onde facilmente derrotou ao sprint Björn Leukemans (Vacansoleil – DCM), com o grupo perseguidor a cruzar a meta mais de 1 minuto depois.

Na Amstel, e ao contrário do ano de Rebellin, chegados à subida final do Cauberg, um grupo relativamente numeroso perseguia o luxemburguês Andy Schleck (Leopard – Trek). Escudado por uma boa equipa da Omega Pharma – Lotto, com especial destaque para Jelle Vanendert, Gilbert sabia que no Cauberg dificilmente seria batido. Apanhado Schleck ainda cedo na subida, foi o espanhol Joaquim Rodríguez (Katusha) que lançou o ataque que acabou a tentativa do luxemburguês e apenas Gilbert seguiu na roda, contra atacando violentamente ainda com alguma distância da meta, que lhe permitiu celebrar com tempo a vitória.

Já mais semelhante à Flèche Wallonne de 7 anos antes, um grupo numeroso abordou o Mur de Huy, com os grandes favoritos com a “cara exposta ao vento” desde cedo, PhilGil não deu oportunidade a ninguém. Definiu o ritmo da subida cedo, atacou de longe e distanciou de tal forma a concorrência que passou os últimos 50 metros a celebrar. Daqui para a frente, faltava a vitória em Liége.

A Liége – Bastogne – Liége foi uma demonstração de força e da forma de Gilbert. A cerca de 20 quilómetros do fim, na subida de La Roche aux Faucons os irmãos Schleck atacaram de forma demolidora para o resto do já muito restrito pelotão, e apenas o belga seguiu com os irmãos luxemburgueses. Os poucos fugitivos que sobravam foram sendo apanhados e despejados, tirando Greg van Avermaet (BMC Racing Team), que se aguentou até cerca de 6 quilómetros do fim. Frank Schleck (Leopard – Trek) ainda tentou algumas vezes deixar para trás o protagonista desta semana, sem resultados práticos. Até Ans, o grupo estabeleceu-se com o mais novo dos irmãos, Andy, a se expor mais ao vento e a acabar a guiar o grupo. No último quilómetro e meio havia resignação e aceitação dos irmãos, que percebiam que não conseguiriam levar a melhor sobre o belga, que ao sprint confirmou o seu domínio, nesse ano, sobre o resto do pelotão. Três vitórias sem qualquer contestação, em que a força e inteligência na leitura da corrida ditou o mesmo vencedor três vezes.

Esta semana catapultou PhilGil para o resto da temporada, na qual foi o ciclista do ano. Vencedor de uma etapa no Tour (no qual vestiu, por um dia, a maillot jaune), da Classica de San Sebastián, do GP du Quebec e duplo campeão nacional, com várias provas de menor importância ganhas sempre de forma dominante, Gilbert teve a semana, e o ano de uma carreira. Viria a ganhar a Amstel Gold Race mais duas vezes, em 2014 e 2017, assim como o Campeonato do Mundo de 2012, sempre com passagem pelo seu Cauberg, onde de todas as vezes fez a movimentação que definiu a corrida. Ainda hoje, uma das alcunhas de Gilbert é “Senhor Cauberg“. Com a passagem dos anos, PhilGil também mudou. De um ciclista ultra explosivo, foi trocando essa capacidade por capacidade nos pavês, que foi recompensada com uma Ronde van Vlaanderen, em 2017, e uma Paris – Roubaix, em 2019. Ficou apenas a uma Milano – San Remo – onde foi pódio 2 vezes – de completar os Monumentos do calendário do ciclismo.

Philippe Gilbert fez a Tripla das Ardenas em 2011. Foto: Getty Images

Desde então, nenhum ciclista conseguiu repetir os feitos de Rebellin e Gilbert. Valverde em 2015 e 2017 ficou perto, mas – e de forma surpreendente – nunca conseguiu ganhar uma Amstel Gold Race. Em 2023, Tadej Pogacar ganhou a Amstel e a Flèche, mas caiu na Liége – Bastogne – Liége e ficou arredado da discussão. Irá alguém conseguir repetir o feito de Rebellin e Gilbert em 2025?