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Paris – Roubaix 1981: Aqui é para campeões

Quando o ano de 1981 começa, Bernard Hinault já era o “Rei e Senhor” do pelotão internacional. No seu palmarés já encontravam, de forma muita resumida, um Campeonato do Mundo de Estrada, 1 Giro, 1 Vuelta, 2 Tours, 2 Liége – Bastogne – Liége (a de 1980 de forma absolutamente épica), 1 Giro de Lombardia e 3 Chrono des Nations – considerado, à época, de forma não oficial o campeonato do mundo de contrarrelógio.  Ainda assim, Hinault não era o mais adorado dos ciclistas. De temperamento difícil, tinha como alcunha “Le Blaireau” que em português se traduz para “A Doninha”. Isto era tanto devido à sua forma muito combativa, espetacular e corajosa de correr, como pela já mencionada personalidade complicada que lhe valeu várias vezes as críticas da media francesa, e até do público em geral. 

Hinault era, acima de tudo, um ciclista de provas por etapas, que sempre que o terreno inclinava era de esperar um ataque, mas que a sua capacidade de contrarrelogista tornava-o num ciclista muito perigoso em provas de 1 dia. A sua vitória no Campeonato de Mundo de 1980 é uma das suas maiores demonstrações de força. No duro circuito de Sallanches ataca na primeira volta chegando aos 37 s de avanço e deixa-se apanhar pelo grupo que o perseguia, tudo para mandar uma mensagem aos restantes ciclistas e avisar que o título mundial ficaria em França. A cerca de 6 voltas do fim passa para a frente do grupo onde se encontrava e vai impondo o seu ritmo. 1 a 1 os seus colegas de fuga vão ficando para trás e a 8 kms da meta desfere o ataque final, deixando a mais de um minuto o italiano Gianbattista Baronchelli. De 107 ciclistas que começaram a prova, apenas 15 acabariam. 

Bernard Hinault celebra a vitória do Campeonato do Mundo em Sallanches. Fotografia de John Pierce, retirado do “The Telegraph”.

Também nesta altura, a especialização do ciclismo começa a se tornar mais clara. Um ciclista como Eddy Merckx, que fazia tudo ao nível mais elevado, começava a ser mais raro, sendo que Merckx é mesmo o apogeu dos ciclistas completos. Devido ao fim da carreira do belga (para muitos o melhor de todos os tempos), os franceses queriam o seu próprio Merckx. Alguém capaz de dominar ano inteiro tanto um Giro de Italia como uma Ronde van Vlaanderen. No caso dos franceses, capaz de dominar em julho no Tour de France, e em abril na Paris-Roubaix. Devido às capacidades atrás mencionadas, e devido ao facto de e próprio ser o melhor ciclista do mundo no seu auge, Hinault foi o escolhido. Porém, Hinault detestava as provas do pavê. Mais que uma vez as comparou com provas de cyclocross – quando era elogioso -, ou até com um circo – quando era mais abrasivo -, mas por motivo de orgulho, e porque os media o foram provocando, eventualmente acabou por aparecer na startlist do Paris – Roubaix. Primeiro em 1979, com um despercebido 13º lugar, a mais de 7 minutos do vencedor. Em 1980 voltou a participar, justificando a sua presença com a etapa que acabaria em Lille na versão desse ano do Tour, com passagens em vários dos setores que “O Inferno do Norte” apresenta em abril. Em julho, apenas Hennie Kuiper, uma grande figura do ciclismo entre 1975 e 1985, consegue aguentar o ritmo de Hinault e o acompanha até à meta, onde acabou por finalizar atrás do francês protagonista da história de hoje. Nesse dia, Hinault mostra uma possibilidade de candidatura de vencedor do Paris – Roubaix do ano seguinte. Apesar de tudo isto, Hinault recusa-se a voltar ao “circo” da “Rainha das Clássicas”. 

Conhecido como um ciclista que detestava treinar e que repetidamente iniciava a temporada com alguns quilos acima do recomendado, em 1981, Hinault inicia a temporada mais cedo que o normal. Apesar de dizer que não quer repetir o Paris – Roubaix, Hinault prepara-se para a prova, que diz competir “apenas por respeito à camisola de Campeão do Mundo”. 

O Paris – Roubaix de 1981 tinha na startlist absolutos “monstros” do desporto. Francesco Moser – vencedor das  3 edições anteriores -, Roger de Vlaeminck – vencedor de 4 edições entre 1972 e 1977-,  Marc Demeyer – vencedor de 1976 -, e até o próprio Hennie Kuiper encontravam-se num lote de favoritos. Também Sean Kelly (um palmarés gigantesco e vencedor do monumento francês em 1984 e 1986),  Gilbert Duclos-Lassalle, segundo lugar em 1980 e duplo vencedor no ocaso da sua carreira – em 1992 e 1993 -, ou até Jan Raas, vencedor em 1982, se encontravam na partida da prova. 

Como sempre uma corrida atribulada, a Paris – Roubaix de 1981 não desiludiu. Vários ataques, vários grupos e muito, muito caos. Quedas e furos definiram parte da corrida. De Vlaeminck seguia com Duclos-Lassalle a cerca de  até que um furo do belga a 25 quilómetros da meta, seguido de uma queda, o obrigou a recolher a um grupo de 5, que a cada período de “descanso” junta-se a um grupo mais numeroso, mas que nos duros setores se voltava a separar. É este grupo de 6 que define a corrida. Duclos-Lassalle é eventualmente apanhado e deixado para trás e os últimos 15 quilómetros são do grupo de 6. Os constituintes do grupo são Hinault, Moser, de Vlaeminck e Kuiper (colegas de equipa), Marc Demeyer – conhecido por ser um gregário de luxo de Freddy Maertens, mas que ainda assim acumulou cerca de 60 vitórias na carreira, algumas em etapas de Grandes Voltas antes de falecer aos 31 anos, em 1982 – e Guido van Calster, o nome mais surpreendente do grupo, mas um ciclista que acumulou alguns bons resultados nas clássicas e semi-clássicas com empedrado. 

Após a passagem pelos setores mais duros da prova, e a cerca de 10 quilómetros do fim, Hinault ataca novamente. Neste ponto da corrida, era claro que Hinault era o mais forte em prova, mas não o mais rápido ao sprint, ainda para mais tendo em conta que já haveria furado e caído um total de 6 vezes. A custo, todos conseguem colar a Hinault, que na saída do último setor de pavê, a cerca de 8 quilómetros do mítico Vélodrome de Roubaix, cai mais uma vez, após chocar com um cão na berma da estrada. Com o grupo principal a grande ritmo, Kuiper toma a dianteira, enquanto que Hinault rapidamente se põe em cima da bicicleta e encosta na frente enquanto que no carro do diretor de prova se encontrava um espetador muito especial – Louisin Bobet, até então o último vencedor francês do monumento, e também ele vencedor de 3 Tours de France. 

Um dos vários contra tempos que Hinault foi enfrentando ao longo da Paris – Roubaix de 1981. Retirado de “condorcycles.com”

Na chegada ao Vélodrome, Kuiper trabalha para o seu líder, de Vlaeminck, até que a 400 metros do fim, e a mais de uma volta completa do fim, Hinault assume a dianteira e aumenta o ritmo até lançar o último sprint a 200 metros do fim. Ninguém se aproxima do campeão do mundo, que com mais uma incrível demonstração de força – tanto física como mental -, se torna incontestável no mundo do ciclismo. Todas as dúvidas e críticas dirigidas a Hinault se desfazem, tornando-se intocável, tornando-se a sua personalidade pouco amigável mais suportável e até, de certa forma, acarinhada, apesar da exigência a Hinault nunca parar. Hinault voltaria em 1982, fechando em nono lugar, nunca mais voltando, preferindo acumular Grandes Voltas, provas de uma semana e de um dia. 

Bernard Hinault a cruzar a meta do Vélodrome de Roubaix à frente de Roger de Vlaeminck e Francesco Moser. (Getty Images)

Retirar-se-ia em 1986, com o estrondoso registo de 13 Grandes Voltas em que entrou, 10 vitórias, 2 segundos lugares, e uma desistência (ainda hoje muito debatida) no Tour de 1980 quando seguia na liderança. É até hoje o último vencedor francês de um Tour de France, e o melhor ciclista francês de sempre. O derradeiro campeão e o último a conseguir a dupla Paris – Roubaix e Tour de France.