O ‘sprinter de clássicas’ belga aponta às clássicas da Flandres, vai fazer a estreia no Tour de France e sonha com uma oportunidade olímpica.
No início da época de 2024, Arnaud De Lie está numa encruzilhada. Se houvesse uma metáfora para descrever a posição do ciclista belga de 21 anos, seria a famosa cancela do Paris-Roubaix, que por vezes, pela dificuldade em conciliar a passagem da corrida com os horários da ferrovia local, começa a fechar enquanto o pelotão ainda está a passar.
Do lado de cá, está um caminho bem conhecido de De Lie, o mesmo por onde pedala desde que foi promovido à equipa principal da Lotto Dstny em 2022, fazendo-se passageiro da circunstância difícil desta equipa histórica, que acabaria na sua despromoção do World Tour no final da temporada… não por causa deste irreverente passageiro, que cedo se instalou nas carruagens da frente e até ajudou o maquinista (na altura, Caleb Ewan) a pôr mais lenha na fogueira, transformando-se ele próprio numa máquina, de marcar pontos UCI, à solta pelos campos da Bélgica. Mas agora, o familiar caminho encontra a cancela, o chão treme, ouve-se o apito do comboio e essa cancela, no alto da sua jovialidade, começa a baixar. Agora o comboio é outro, a carruagem é de primeira classe, servem-lhe uma Kwaremont e um croissant, e os campos não lhe parecem tão familiares.
A partir de 2024, ‘O Touro de Lescheret’ não é mais um ciclista de pequenas e médias clássicas, mas de grandes monumentos e voltas. Os grandes objetivos da sua temporada são a Ronde Van Vlaanderen, atrelada ao Paris-Roubaix, e o Tour de France. E a mudança começa por refletir-se na preparação: “A preparação foi um pouco diferende do ano passado. Fiz alguns intervalos, mas comecei a época um pouco mais cedo no ano passado, este ano tenho mais tempo.” Apesar da Flandres ser uma zona baixa, o estágio de altitude que fez no Teide foi fundamental, estando o início de época agendado para a Vuelta a Murcia, a 10 de fevereiro.

Foto: LNC/Bruno Bade
O caminho bem conhecido, até à Flandres
Arnaud De Lie é um ciclista muitas vezes incompreendido: “Todos pensam que sou um sprinter puro, mas na minha carreira apenas ganhei dois sprints puros. Eles não são a minha especialidade, prefiro sprintar no final de corridas duras.” Em relação a esta especialidade, que o próprio classifica como “sprints nas clássicas”, parecem existir duas componentes principais: “Uma é física, tens que ser capaz de estar lá e competir pela vitória; a segunda é de leitura, saber como te posicionar, o que fazer.” Qual é então a diferença entre um sprint numa clássica e em pelotão compacto? “Para os sprints nas clássicas, eu penso que sou muito bom, porque preciso de menos velocidade e toda a gente já está ‘morta’. Quando sprintas neste contexto, tens de ser mesmo o melhor.”
Como exemplo do ciclista que trabalha para ser, invoca Tom Boonen, compatriota vencedor de três Rondes e quatro Roubaix, que cruzava a sua boa ponta final com uma apetência para os pavés. Essa apetência é comparada por De Lie a um parkour, que exige acima de tudo muita força e concentração. “Todas as curvas numa clássica da Flandres são importantes, portanto durante 200 quilómetros tens de sprintar para cada curva. Também é importante ter muita experiência”, uma experiência que ele tem vindo a ganhar: “Todos os anos faço progressos no parkour.”
Falando dos seus objetivos para essas corridas, o ciclista belga admite que “Não tenho muita experiência no Tour de Flandres e no Paris-Roubaix, mas penso que em todas as outras clássicas, como a Omloop Nieuwsblad, a Le Samyn e a Dwars door Vlanderen, é possível ganhar. Temos equipa para isso.” Por não conhecer ainda as suas hipóteses nos Monumentos, prefere moderá-las num objetivo de top-10, ainda que já conheça outras coisas sobre eles. “Para cada clássica da Flandres, eu vejo a última e a penúltima edições. Quando as pessoas dizem que no ciclismo não existem táticas, não é assim.”
Vídeo: X/Gent-Wevelgem
O apito soou para De Lie aquando da renovação com a Lotto Dstny, anunciada em agosto do ano passado. Questionado sobre ter dito antes que não queria assinar um novo contrato, ele esclarece: “Não foi não assinar um novo contrato, mas porque já tenho um longo contrato de três anos”, admitindo que “estou muito feliz com a decisão [de renovar até 2026] e é importante para a equipa. Agora temos três anos para obter grandes resultados e fazer boas memórias.”
Exigências para renovar? Apenas uma: Lionel Taminiaux, ciclista proveniente da Alpecin – Deceuninck para servir como lançador. “É bom quando a equipa responde à tua opinião, porque eles têm muitos pedidos de todos os corredores, por isso estou muito feliz com a decisão deles sobre o Lionel Taminiaux”, deixando antever que “se me for possível ter mais confiança com ele e também com o Jasper de Buyst, é possível colocar os sprints puros nos meus parâmetros.”
Sobre o caminho bem conhecido, o primeiro ano na Lotto Dstny “foi um sonho”, com 9 vitórias na época de estreia como profissional e a primeira bem cedo na temporada, logo no Challenge Maiorca. Mas a paisagem começou a mudar logo no segundo ano, que “foi muito diferente, porque toda a gente já sabia que eu não era nada mau, mas eu também sabia qual era a minha qualidade e dei o meu melhor.” A constante foi o apoio dos companheiros de equipa, não só nas provas como também no balneário. “Com o Victor Campenaerts, aprendi o estilo de vida de um ciclista profissional”, que considera a maior lição que já aprendeu, elogiando também o seu companheiro Florian Vermeesch – “um ciclista muito bonito”.
Nestas inclui-se também a família, uma vez que o irmão, Axel De Lie, integra a estrutura de desenvolvimento da Lotto Dstny. Para Arnaud, Axel foi fundamental no desenvolvimento da sua mentalidade competitiva: “O meu irmão é mais velho do que eu, então quando era pequeno, batê-lo num sprint ou numa subida foi sempre a minha motivação. [Comecei a batê-lo] com 10 anos, e agora é mais fácil do que antes”, acrescenta com um toque de humor. Seja dentro ou fora do contexto de competitividade, a relação entre irmãos é muito saudável: “Hoje em dia, fazemos todos os treinos juntos e isso é muito bonito”.

Foto: Luc Claessen/Getty Images
O ano de 2023 teve ainda o momento caricato do ‘sprint coxo’ na Famenne Ardenne Classic. “É melhor sprintar com duas pernas, porque com uma perna nunca se sabe”, admite De Lie no seu humor característico, e em relação ao que sentiu no momento, tem para dizer à Portuguese Cycling Magazine que “Quando sprintei com as minhas duas pernas, sabia que ia ganhar, mas depois [de ter partido a bicicleta], pensei em tudo. No final, é uma vitória e isso é okay.” Antes disso, nos Europeus de ciclismo, onde De Lie contribuiu com o impressionante lançamento de Wout Van Aert para uma medalha de prata com ‘sabor amargo’, ele já tinha recebido uma surpresa musical: “A música foi realmente uma surpresa para mim. Foi logo a seguir aos Campeonatos Europeus, onde estivemos bem mas falhámos o grande objetivo. Depois a minha mãe ligou-me e, pelo telefone, disse-me que havia uma nova música sobre mim. Foi fixe e engraçado, e eles [os elementos da banda] são bastante bons.”
Vídeo: X/Marc
Com duas pernas pedala-se, com uma desenrasca-se, sempre ao som da música. É por fazê-lo também bem que De Lie se tornou numa das caras da Lotto Dstny – no media day, todos falam sobre ele. À medida que a cancela começa a baixar, o jovem cresce perante ela, preparando-se para a travessia, para não ficar à espera que o comboio passe. ” Não sinto mais pressão. Porque quando um ciclista sabe o que quer, a pressão vem com ele, não com a equipa. Na minha visão, eu sei o que quero, treino todos os dias, faço o trabalho por mim, logo é mais simples.”
Vídeo: YouTube/Ramones van het Groenewoud
O Tour de France, para além da cancela
À medida que Arnaud De Lie se aproxima da cancela, e que esta baixa mais um pouco, vai conseguindo observar o que está do outro lado. Vislumbra assim uma estreia em grandes voltas e logo pelo maior caminho: o Tour de France. “Estou muito entusiasmado para participar num dos maiores eventos do mundo. Acho que há muitas oportunidades para eu levar uma vitória ou um bom resultado; vamos ver, mas estou muito entusiasmado e ansioso para a corrida.” Da memória longínqua de quem revê uma corrida precisamente para aprender o caminho, relata a vitória de Philippe Gilbert no começo do Tour 2011, sendo que, anos mais tarde, teve a oportunidade de ver a corrida passar perto da sua casa.
O caminho do Tour e da França leva também a um outro grande evento, verdadeiramente o maior para a generalidade dos desportistas. “Com certeza que os Jogos Olímpicos serão um grande objetivo para mim e também para a seleção belga”, mas é precisamente no contexto de seleção que começam os desafios. “Temos muito talento na Bélgica, portanto não é fácil estar lá. Se eu for, ficarei muito feliz, mas se alguém disser que eu não sou uma boa opção, com certeza que compreendo. Vamos ver depois das clássicas da Flandres e do Tour de France. Ainda está muito longe, muito pode acontecer entretanto.”

Foto: Tim de Waele/Getty Images
Por entre os grandes objetivos no eixo franco-belga, o programa de corridas de Arnaud De Lie é extenso e diversificado. Como já foi referido, inicia a época em Espanha, ao que se segue uma presença no Paris-Nice, acreditando que “a primeira e a quarta etapas são boas oportunidades para eu vencer a minha primeira etapa no World Tour.” A Milano-Sanremo representa, por seu turno, “uma corrida muito diferente, mas que é possível ganhar”, antes das clássicas da Flandres, já discutidas. A temporada de clássicas apresenta, como extra final, a Amstel Gold Race, uma corrida da qual De Lie admite gostar pelas “estradas estreitas e subidas não muito longas, que me favorecem”. O Tour de Suisse antecede o Tour de France e, por fim, as clássicas canadianas, com a qual o ciclista belga tem uma relação especial: foi no Quebec que conquistou a sua primeira corrida World Tour, mesmo assegurando que os seus watts não foram assim tão impressionantes, enquanto em Montreal conheceu “a corrida mais dura da minha vida, à chuva seis horas”.

Foto: James Startt/GPCMQ
Em suma, Arnaud De Lie está numa encruzilhada, mas para ele não existem dois caminhos, apenas um, que está bem definido e tem uma única direção: em frente. Mesmo que a cancela esteja a baixar, e comece a baixar cada vez mais à medida que o jovem aprendiz se transforma em mestre adulto, nada o impedirá de atravessar, qual comboio de alta velocidade, com a certeza de que a recompensa do outro lado valerá a pena!
Agradecemos a Arnaud De Lie e à Lotto Dstny a disponibilidade para nos conceder esta entrevista e desejamos-lhes boa sorte na temporada de 2024!
Foto de capa: Velo Collection/Getty Images