Roglič e Pogačar são dois nomes conhecidos dos fãs de ciclismo. Mas o que torna a Eslovénia numa ‘piscina de talentos’ para esta modalidade?
A Eslovénia é uma nação pequena. Com uma existência recente e apenas 2 milhões de habitantes, dificilmente poderia entrar numa prova da magnitude do Tour de France e discuti-la. Mas certo é que o fez, e logo com 2 atletas.
Porquê a Eslovénia?
A surpresa torna-se menor ao examinar as condições que tornaram este grande feito possível. Já no século XIX, o desporto esloveno era ativamente promovido a nível local, para invocar o sentimento nacional contra o domínio austro-húngaro. No meio das tensões políticas, a mentalidade eslovena, ambiciosa e trabalhadora por natureza, encontrou no desporto o seu aliado perfeito. No século XX, a nação eslovena passou a integrar a Jugoslávia e os atletas provenientes da pequena república tornaram-se destaques nas fileiras desportivas do “país dos eslavos”. A Eslovénia é indissociável dessa maior potência, que se desmembrou depois de uma violenta guerra na década de 1990, tendo herdado as suas infraestruturas e a sua prestigiada escola de atletas. Deixada praticamente intocada por essa guerra, subsistiram as condições suficientes para continuar o legado.
Atualmente, as infraestruturas são subsidiadas pelas comunidades locais, o que as torna financeiramente acessíveis a todos. Além da prática desportiva continuar a ser altamente valorizada pelos eslovenos, a geografia do país e a ligação com a natureza continuam a incentivá-la. Com alguns dos cenários mais idílicos do mundo em plano de fundo, a Eslovénia promete continuar a ascender na hierarquia do desporto mundial.
Primož Roglič: “Do Telemark à Glória no Tour“
Como já vimos, a prática desportiva integra a mentalidade eslovena, e uma consequência disso é que todas as modalidades no país estão interligadas. Se essa interligação não existisse, um dos maiores craques do ciclismo atual nunca poderia ter emergido como “número 1” de 2020. Trata-se de um jovem que aspirava ser saltador de esqui, mas as sucessivas quedas e as lesões fizeram-no dar uma hipótese a um desporto com o qual sempre simpatizou: o ciclismo.
A história incrível de Primož Roglič começou aqui. No início, as dificuldades na adaptação e nos treinos foram imensas. Mas o desejo de superação de Roglič esteve à altura das dificuldades, ao ponto de, apenas um ano após ter tomado a decisão mais importante da sua vida, implorar por uma oportunidade ao ‘boss’ do ciclismo esloveno, Andrej Hauptman. Hauptman deixou-se convencer e em 2013, Roglič juntou-se à equipa continental Adria Mobil. Duas épocas mais tarde, Primož destacou-se, com boas prestações e vitórias em provas de uma semana que lhe valeram o primeiro contrato World Tour, com a equipa que representa atualmente, a Jumbo.
Roglič ‘explodiu’ como atleta no World Tour. Em 2016 venceu um contrarrelógio no Giro d’Italia e em 2017 estreou-se no Tour de France e trepou o Col du Galibier para vencer uma etapa a solo, no vale. Nesse mesmo ano, venceu em solo português, no Algarve. O seu potencial confirmou-se em 2018, com as primeiras vitórias em provas de uma semana. No Tour desse ano, lançou-se em descida para vencer uma etapa épica e chegou a ocupar o pódio, tendo perdido esse lugar para Chris Froome após uma dura batalha contra o relógio. Os saltos nunca abandonaram verdadeiramente Roglič enquanto este ‘aterrava’ em cada vez mais pódios, efetuando o gesto de genuflexão, típico da modalidade, conhecido como telemark. Em 2019, já com outro estatuto, Roglič focou-se no Giro, onde acabou no pódio, e na Vuelta a España, onde venceu.
Em 2020, conquistou o seu primeiro monumento, a Liège-Bastogne-Liège, e venceu a prova espanhola pela segunda vez, consolidando-se como o “melhor ciclista do mundo”. Há 3 meses, apresentou-se no Tour como favorito máximo à vitória, mas não conseguiu a ‘glória no Tour’ pretendida. O seu incrível percurso de vida cruzou-se com o de um jovem compatriota…
Tadej Pogačar: De Pogi a “Pogastar”
Desde muito jovem que Tadej Pogačar começou a competir. Mas ao contrário de Roglič, não precisou de implorar para convencer Andrej Hauptman. Bastou o treinador e ex-ciclista esloveno assistir a uma corrida de adolescentes e deparar-se com um grande grupo, seguido de perto por um corredor muito mais jovem que os restantes. Hauptman pediu aos organizadores da prova para ajudarem o ‘rapaz’ a reentrar no grupo, mas estes explicaram que o ‘rapaz’ não estava atrasado, na verdade estava a ganhar uma volta de avanço ao grupo.
A partir desse momento, a vida de Pogačar mudou. Hauptman tornou-se seu treinador e mentor, conduzindo-o até ao profissionalismo após a vitória no Tour de l’Avenir (Volta à França do Futuro) em 2018. Já na equipa da Emirates, tornou-se o vencedor mais jovem de uma prova World Tour, ao vencer a Volta à Califórnia. Uns meses antes, à semelhança de Roglič, tinha vencido no Algarve. A época foi fechada com ‘chave de ouro’. Na estreia em grandes voltas, Tadej levou de Espanha três etapas e terminou no pódio final.
Para 2020 as expetativas tornaram-se altas, mas Pogačar sempre manteve uma atitude descontraída face às dificuldades. Depois de perder mais de um minuto no vento, na sétima etapa do Tour, afirmou que “não estava preocupado” e logo na primeira etapa dos Pirenéus recuperou tempo importante para os favoritos. Venceu a etapa no dia seguinte e mais tarde, repetiu o feito no Grand Colombier. Partiu para o contrarrelógio final com 57 segundos de atraso para o líder da prova, Roglič.
Foi aí, num dos contrarrelógios mais emotivos da história do ciclismo, que Pogačar chocou o mundo desportivo, ao recuperar o tempo para Roglič e ganhar a camisola amarela no penúltimo dia do Tour. A manchete do dia seguinte do jornal L’Équipe consagrou a transformação da promessa em estrela, com o título “Pogastar”.
Factos interessantes sobre a Eslovénia… e os seus ciclistas
1. O Monte Triglav é a montanha mais alta da Eslovénia, com 2864 metros de altitude, aparecendo representado no brasão de armas e também, ainda que seja pouco visível, no equipamento de campeão nacional de Roglič.
2. A apicultura é uma atividade popular, praticada por 4,5% da população. Talvez não seja obra do acaso que uma equipa que se veste de amarelo, e que ganhou como alcunha “abelhas assassinas”, tenha um esloveno como líder.
3. A Eslovénia é um país vinícola, sendo que os eslovenos são os sextos maiores consumidores de vinho per capita. Já Roglič admite, em contrariedade com os hábitos consumidores dos restantes compatriotas, que prefere a cerveja, fora da época competitiva.
4. A Eslovénia possui a segunda maior colina de saltos de esqui do mundo, localizada em Planica. Aí, em 2007, Roglič teve um terrível acidente, que certamente o fez repensar o seu futuro como atleta profissional nessa modalidade.
5. Pogačar define o lobo como o seu “brasão pessoal”, uma vez que simboliza as virtudes desportivas pelas quais ele se guia: a ambição de melhorar, a luta implacável e o espírito de grupo. Em março deste ano, o lobo tornou-se um animal protegido na Eslovénia.
6. Entre 1860 e a Primeira Guerra Mundial, cerca de 300.000 pessoas migraram de áreas que integram a atual Eslovénia para os Estados Unidos. Nessa vaga, os bisavôs de Sepp Kuss instalaram-se no Colorado e abriram uma loja que se mantém aberta até hoje! Assim, a química com Roglič deixa de surpreender.
7. A roda pode ter sido inventada na Eslovénia. Aquela que é denominada “a roda dos pântanos de Liubliana” é a mais antiga descoberta até à data, remontando há 5000 mil anos atrás. 5 Milénios depois, dois ciclistas do país, sobre duas rodas, subiram ao pódio da mais importante prova que envolve esse artefacto, o Tour de France.