Carchi, Equador. Uma província montanhosa, que marca a fronteira entre o Equador e a Colômbia no coração dos Andes. A sua capital, Tulcán, está situada a quase 3 mil metros de altitude. Este nome, traduzido para castelhano a partir da língua nativa, significa “guerreiro” e de facto, a província de Carchi viu nascer muitos guerreiros em cima da bicicleta. Basta rever o ataque de Richard Carapaz em La Covatilla, na Vuelta a España 2020, que desafiou a liderança de Primož Roglič quando a vitória já parecia assegurada. Mas para perceber a origem de Carapaz e de todos os ciclistas equatorianos que competem na Europa, é preciso recuar até Juan Carlos Rosero.
A História dos Ñaños e do Condor que os Ensinou a Voar
Juan Carlos Rosero, enquanto ciclista, obteve um palmarés notório na América do Sul e tornou-se no primeiro ciclista equatoriano a competir na Europa, quando em 1992 participou nos Jogos Olímpicos de Barcelona. Depois de se retirar da competição, o “Condor dos Andes”, como era conhecido, tornou-se professor e fundou um clube de ciclismo na escola onde lecionava. Ora, este pequeno clube representou a primeira experiência na modalidade de grandes ciclistas como Richard Carapaz, Jhonatan Narváez e Jonathan Caicedo. Para o ciclismo, todos foram criados pelo mesmo pai, como ñaños (irmãos); e com os seus filhos, Rosero sonhava vencer o Campeonato Pan-Americano e inscrever uma equipa de equatorianos no Giro d’Italia. Falecido em 2013, o “Condor” nunca viu o seu sonho tornar-se realidade, mas não obstante voará para sempre na história do ciclismo equatoriano.
Richard Carapaz, a “Locomotiva”
A mentalidade desportiva de Richard Carapaz pode ser considerada um dos seus mais fortes traços, bem como aquele que mais o distingue no mundo do ciclismo. Para percebê-la, é necessário recuar à juventude de Carapaz, quando um horário dividido entre as tarefas agrícolas, a escola e o lazer ajudaram-no a criar um importante sentido de responsabilidade. Além disso, os pais ensinaram-lhe a humildade, o avô o espírito aventureiro e pode supor-se que a combatividade sempre esteve enraizada no interior do próprio, mas foi Juan Carlos Rosero que o ajudou a descobri-la. Com o seu treinador, Richard partilhava sonhos e ambições e meses após o seu falecimento, seria ele a concretizar o sonho mútuo ao tornar-se Campeão Pan-Americano (em sub-23).
Os resultados de destaque no âmbito sul-americano valeram a Carapaz uma oportunidade na Europa, e logo no World Tour, ao serviço da Movistar. A estreia numa grande volta chegou um ano e meio depois, em 2018, por acréscimo às suas boas prestações nas estradas europeias. E essa estreia, no Giro d’Italia, foi de sonho: nas três semanas de competição, Richard conquistou uma vitória de etapa e terminou em 4º lugar à geral.
Assim, o grande objetivo da época de 2019 passou pelo Giro. Aí, Carapaz começou a dar nas vistas ao quarto dia, quando repetiu o que fizera no ano passado: vencer uma etapa. O tempo perdido nos contrarrelógios apenas estimulou ainda mais o guerreiro em Carapaz e na etapa 15, venceu novamente e conquistou a camisola rosa. No Equador, o furor rapidamente subiu de tom e o próprio governo do país fechou um acordo para que a corrida fosse transmitida na televisão pública. Praças encheram-se para ver Carapaz em ecrãs gigantes. E quando ele cruzou a linha de meta no contrarrelógio final, um país fez uma festa memorável que só acabaria dias mais tarde, aquando da receção ao ciclista.
Depois da grandiosa vitória, uma melhor oferta profissional chegou e um novo capítulo abriu-se na vida de Richard Carapaz, com a transferência para a Ineos. Reinava a incerteza sobre o futuro da “Locomotiva de Carchi”, entretanto batizado pelos seus conterrâneos, que poderia ficar ofuscado no meio de tantas estrelas. Mas Carapaz, mais uma vez, superou as expetativas. A estrela do ciclismo equatoriano teve uma época de 2020 fantástica, em que salvou a prestação negativa da equipa no Tour com grandes exibições na montanha e terminou a Vuelta em 2º lugar, apenas batido por Primož Roglič. Ao longo das três semanas, Carapaz mostrou mais uma vez toda a garra que faz dele um dos melhores do mundo. O maior tributo aos seus feitos pode ser encontrado numa locomotiva pintada no alcatrão de uma estrada em Carchi, sendo que à medida que Carapaz acumula triunfos e camisolas, a locomotiva ganha mais carruagens. Aguarda-se com expetativa o trajeto da “Locomotiva” em 2021.
Os Guerreiros
A vitória de Richard Carapaz no Giro d’Italia em 2019 foi um grande feito não só para ele, mas para todo o ciclismo equatoriano, que promete continuar com a mesma força que já mostrou. E nesse aspeto, 2020 foi um ano importante para o Equador enquanto terra de ciclismo.
Jhonathan Narváez, ciclista de 23 anos da Ineos, considera o treino no Equador como uma vantagem na sua vida profissional. A paisagem natural conjuga a dureza da montanha com a sua tranquilidade, que facilita o descanso. Narváez entrou em contacto com o desporto por influência do pai, fã acérrimo da modalidade, e cedo chegou às melhores equipas de formação, como a Axeon e a Klein Constantia. Em 2019, chegou à Ineos (ainda conhecida como Sky) e um ano depois, venceu uma etapa no Giro d’Italia. No futuro, Narváez quer ensinar a próxima geração com base na experiência que adquiriu e ainda promete expandir, como demonstra as suas prestações recentes ao mais alto nível.
Dias antes da vitória de Narváez, já Jonathan Caicedo havia vencido no Etna, num cenário vulcânico muito semelhante àquele de sua terra. O ciclista que atualmente representa a EF Pro Cycling ainda passa a maior parte do seu tempo em Santa Marta de Cuba, onde treina e gere a sua loja de material para bicicletas. Os seus amigos e companheiros de treinos batizaram-no “El Cubanito”, em referência às suas origens. A vitória na Volta à Colômbia de 2018 catapultou-o para o World Tour, onde promete continuar a dar nas vistas. No nível pro-continental, também os primos Cepeda são já peças importantes das respetivas equipas e começam a brilhar nos grandes palcos em 2021.
“Carapaz, eres capaz a ganar una vez más!”
Os feitos de Richard Carapaz e de todos os guerreiros de Carchí deram a conhecer ao mundo o Equador enquanto terra de ciclismo. No entanto, ainda há muito a ser feito a nível nacional. Em termos concretos, a vitória de Carapaz prometeu contribuir em grande medida para o desenvolvimento de uma verdadeira infraestrutura de ciclismo, num país onde o futebol é rei, que complementasse as condições naturais que favorecem a prática da modalidade. Logo em 2019, o Presidente do Equador anunciou a abolição dos impostos sobre a importação de bicicletas. Adicionalmente, a transferência da “Locomotiva” para a Ineos realizou-se mediante um contrato de milhões de euros, que mudou mentalidades que passaram a encarar o ciclismo como uma atividade profissional.
Um popular cântico continua a ser entoado: “Carapaz, eres capaz a ganar una vez más!”. A combatividade está bem presente, foi afinal transmitida pelo próprio Carapaz para o coração do povo, que se enche de esperança de que ele conseguirá repetir o que já fizera: vencer uma grande volta. Este espírito guerreiro, aliado a uma humildade que contenta-se com o que já tem e não esquece as suas origens, fazem acreditar que o Equador, enquanto terra de ciclismo, voará muito alto no futuro, como o “Condor” Rosero sonhou.
Foto de capa: Getty Images