O Boxing Day. Reza a História que, em meados do século XIX, no Reino Unido e um pouco por toda a Commowealth, começou a ganhar força a tradição das famílias mais abastadas oferecerem aos seus serventes e aos pobres a caixa de Natal (the Christmas box). Atualmente, o Boxing Day é um feriado amplamente associado ao comércio e a eventos desportivos, particularmente ao futebol, encarado em terras de Sua Majestade, e um pouco por todo o mundo, como um dos grandes momentos do ano.
Mas nem só de bola a rolar se faz o Boxing Day. Na Bélgica, o dia 26 de dezembro (e, a bem dizer, toda a semana entre o Natal e a passagem do ano) é sinónimo de ciclocrosse. Como se o carácter especial do dia não fosse já suficiente para deixar os fãs colados à televisão, este ano a Flanders Classics (organizadora da Taça do Mundo) presenteou-nos com Gavere no menu do dia. Um dos clássicos do ciclocrosse internacional, a primeira corrida de ciclocrosse em Gavere realizou-se no ano de 1978, e foi vencida por Eric De Vlaeminck, irmão de Roger De Vlaeminck, que terminaria na 2ª posição. Foi a primeira vez que uma prova da Taça do Mundo aconteceu neste local, que anteriormente fazia parte do calendário do Superprestige.
Um traçado duro, desafiante, cuja primeira metade é feita a alta velocidade, com descidas intercaladas com algumas subidas curtas, com curvas fechadas que exigem dos crossers alguma explosividade, técnica e boa condição física. Já que é necessário desmontar da bicicleta em algumas secções. Após uma longa reta asfaltada de transição para a segunda metade do traçado, os ciclistas enfrentam aquele que é, talvez, o troço mais icónico de Gavere: a longa e duríssima subida, local muitas vezes decisivo no desfecho da corrida, que antecede uma descida inclinada, sinuosa e perigosa. Daqui, os ciclistas são encaminhados para mais uma secção dura do percurso, com mais uma subida complicada antes da segunda passagem pelo posto de material, que marca o início da última parte do circuito, que não apresenta dificuldades de maior até à meta. Com a chuva que tem caído com intensidade nos últimos dias nesta zona da Bélgica, a lama foi presença certa no traçado de hoje, e tornou aquilo que já seria um percurso duro, um autêntico “Adamastor”.
Como se isto não fosse suficiente para manter qualquer ir colado ao sofá, a presença das maiores estrelas da vertente foi a cereja no topo do bolo: Mathieu Van der Poel (Alpecin-Deceuninck), Wout Van Aert (Jumbo-Visma), o campeão mundial Tom Pidcock (INEOS Grenadiers), o campeão europeu Michael Vanthourenhout (Pauwels Sauzen-Bingoal), o líder da Taça do Mundo Laurens Sweeck (Crelan-Fristads) ou Lars Van der Haar (Baloise Trek Lions), o último vencedor em Gavere (infelizmente Eli Iserbyt não recuperou da sua queda em Val di Sole e não pôde estar presente). Hoje poderia ser o dia do desempate entre Van der Poel e Van Aert, já que cada um conta com duas vitórias em Gavere, mas Pidcock não poderia ser menosprezado, já que em 2020 levou a melhor frente a Van der Poel nesta mesma prova.
Logo desde cedo Van der Poel mostrou que queria “vingar” a derrota no Exact Cross de Mol. Na primeira volta, e ainda dentro da primeira metade do percurso, já tinha assumido o comando do pelotão, com Pidcock, Sweeck e Van der Haar a acompanhá-lo nas primeiras posições. Apesar de uns metros iniciais menos fulgurantes por parte de Van Aert, Gavere coloca cada um no seu respetivo lugar, e a primeira passagem pela longa subida que marca o traçado de hoje permitiu ao campeão belga ultrapassar os adversários que se intrometiam entre ele e o duo Van der Poel e Pidcock, que então tinham já cavado um foço para os restantes. A partir daqui foi uma luta fantástica entre os Big 3, que passou por várias mudanças no comando da corrida, e momentos de ciclocrosse puro. No início da segunda volta, um furo na roda traseira de Van der Poel abriu a porta da liderança a Pidcock, e possibilitou a aproximação de Van Aert que, em conjunto com o neerlandês, encetaram a perseguição do britânico durante a volta seguinte.
Até à terceira passagem pela grande subida, momento em que, desmontando da bicicleta, e beneficiando de um erro tático de Pidcock, que optou por não o fazer, o duo perseguidor alcançou o campeão do mundo, ultrapassando-o mesmo nos metros seguintes. Simultaneamente, foi altura do ataque de Van der Poel, que aproveitando a sua técnica apurada em cima da bicicleta, isolou-se na frente da corrida na passagem pela perigosa descida que sucede esta subida.
A quinta volta abriu com os três mosqueteiros muito próximos na frente da corrida, com Pidcock a alcançar novamente a liderança na primeira passagem pelo posto de material. Mas, mais uma vez, a passagem pela subida foi determinante, já que o levezinho Pidcock caiu da liderança para o terceiro lugar, ultrapassado primeiro por Van der Poel, e depois por Van Aert. O cansaço já era muito, e as pequenas distâncias que separavam os três no final da subida foram alargando no que restava percorrer no dia de hoje. No final de seis voltas de enorme espetáculo, Van der Poel cruzou a meta ao fim de 57:14 minutos, mais 27 segundos do que Van Aert, e mais 54 segundos que Pidcock.
Na classificação geral da Taça do Mundo, Sweeck continua na liderança, com 308 pontos, seguido por Vanthourenhout (287 pontos), que hoje foi o melhor dos restantes (4º lugar, a 1:53 minutos). Iserbyt, apesar de não ter corrido em Gavere, mantém a terceira posição, com 249 pontos.
Amanhã corre-se o Superprestige Heusden-Zolder, com início às 14:10.
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