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“Ser mulher (e comissária) no ciclismo”

“Você faz as coisas como um homem…”. Com um leve sorriso de surpresa, pensei comigo mesma, devo considerar isto como um elogio ou uma ofensa? Decidi-me pelo primeiro e agradeci, afinal estávamos em África e as mulheres não têm o mesmo estatuto que os homens nem as mesmas funções. Era a cerimónia de encerramento da Africa Cup e o meu interlocutor era um dos Diretores Desportivos de uma das seleções presentes na prova e estava a referir-se ao meu trabalho como Presidente do Colégio de Comissários e a elogiá-lo. Este episódio aconteceu 30 anos após ter começado a minha carreira de comissária.

Na realidade a minha estreia no ciclismo foi como intérprete de equipas estrangeiras no Troféu Joaquim Agostinho e gostei tanto do ciclismo que quando completei 18 anos decidi fazer o curso de Juiz e Cronometrista. Foi em 1988 que, junto com a Paula Martins, nos tornámos nas primeiras mulheres a exercer essa função. Nessa altura estava escrito no regulamento que as mulheres não podiam acompanhar as provas na caravana dos carros.

Foto: João Fonseca

Foi fácil ser mulher-comissária num meio de homens? Claro que não, tínhamos dois “defeitos graves”, éramos mulheres e jovens. Ouvimos imensas vezes “não podem fazer isso porque são mulheres” e a resposta foi sempre “não podemos? Então vamos fazer”. Tivemos que conquistar o nosso lugar e o respeito de todos, passo a passo, de forma demorada e dura, mas os resultados foram chegando.

A mentalidade era diferente há 30 anos atrás e se hoje ainda não há igualdade a 100%, nessa altura muito menos. Fomos etiquetadas de termos relações amorosas com vários membros do ciclismo, mas afinal como não era verdade, passamos a ser etiquetadas de lésbicas. O típico machismo de que as mulheres num mundo de homens não podem ser “apenas” profissionais competentes.

Foto: GNR

Cinco anos depois de termos começado, a Paula Martins foi a primeira Comissária Internacional Portuguesa (entre homens e mulheres) e outros cinco anos depois, eu fui a segunda. A partir daí os argumentos em relação à nossa competência deixaram de fazer sentido. Foram dois marcos importantes para que mais mulheres se tornassem comissárias e tivessem a vida mais facilitada para exercerem as suas funções com as mesmas condições.

O facto de termos um papel de liderança nas provas e de o mesmo ser exercido por mulheres também nem sempre é bem aceite, por exemplo, nos Campeonatos Africanos, no Egito, em 2013, estava nomeada como Presidente e tive que passar para Comissária 2 simplesmente porque era mulher; ou a situação de um corredor muçulmano que encontrei em várias provas e que sempre se recusou a apertar-me a mão por eu ser mulher… Enfim, histórias teria muitas para contar, mas o importante é que nenhuma delas me impediu de fazer aquilo que eu amava fazer e de alcançar os meus objectivos.

Foto: João Fonseca

Actualmente a realidade no nosso país já é bem diferente, as mulheres comissárias são respeitadas e já são uma presença constante nos colégios de comissários, atrevo-me a dizer que já podemos falar num nível elevado de igualdade. E igualdade, para mim, não é mais do que termos as mesmas oportunidades e condições para fazermos o que queremos, independentemente de sermos mulheres ou homens. Tenho muito orgulho de ter sido uma das pioneiras nesta área e de ter dado o meu pequeno contributo para chegarmos ao agora.

A igualdade faz-se em cada dia, em cada momento das nossas vidas, porque ainda há muito por fazer.

Viva o Dia Internacional da Mulher!

Isabel Fernandes

Foto de capa: João Fonseca