Entrevistas, PCM Flash Interview

PCM Flash Interview: Bernardo Gonçalves

PCM Flash Interview: Bernardo Gonçalves

O nosso convidado especial para esta segunda edição do PCM Flash Interview é Bernardo Gonçalves (X-Speed United), ciclista de 25 anos, que irá completar a sua 5.ª temporada no estrangeiro e o 3.ª na estrutura da X-Speed United, em 2024. Além de ser ciclista profissional, é Mestre em Engenharia Mecânica (link para a tese de mestrado aqui) e fundou a AeroEdge, uma empresa especializada em aerodinâmica. Podes conhecê-lo melhor neste PCM Flash Interview!

Portuguese Cycling Magazine (PCM): Vais entrar no teu terceiro ano na estrutura da X-Speed United. Como é que se deu a tua entrada na equipa e o que é que te atrai mais nesta estrutura?
Bernardo Gonçalves (BG): Uma das vantagens de estar a correr no estrangeiro durante todo o ano é o contacto direto que se fazem com ciclistas e membros do staff de equipas como esta. A minha entrada na X-Speed United foi um pouco assim. O ano de 2021 foi um pouco atribulado, pois foi uma altura em que estava a correr a maior parte do tempo na Bélgica, a terminar o mestrado e a escrever a tese, e em que as coisas não estavam a correr da melhor forma. Eu contactei a equipa na altura, pois uma das coisas que me atraiu foi o ambiente “mais relaxado” da equipa, e logo na primeira reunião que tive com eles fiquei muito contente com a transparência e a simplicidade das pessoas, e fiquei muito grato que eles me tivessem dado a oportunidade de me juntar à equipa. Ao longo destes 2 últimos anos, eu e a equipa fomos crescendo. Eu fui aprendendo e fui-me tornando um membro com um papel muito ativo em todos os aspetos da equipa, e isso é algo sempre muito aliciante, pois, nesta equipa, todos os corredores sabem o que se passa a todo o momento, e existe transparência completa sobre todos os procedimentos. Devido à natureza única desta equipa, juntam-se corredores com uma mentalidade diferente da que vemos na maior parte das outras equipas. Aqui, tem-se a noção de que cada indivíduo é o seu maior crítico, e quando as coisas correm mal, existe um espírito de apoio coletivo, em que tentamos olhar de uma forma positiva para cada evento, e não darmos tanta relevância a erros e a pequenos problemas que possam aparecer no caminho. Logo, os corredores têm um grande entusiasmo em cada corrida que fazem, e vive-se num ambiente muito tranquilo, fazendo com que a X-Speed United seja uma das equipas mais glorificadas em cada evento que participa. Portanto, este ambiente propício para o desenvolvimento continuo de cada atleta quer fisicamente, quer psicologicamente; os colegas de equipa com um nível de maturidade acima do normal; managers e membros do staff com uma mente aberta, dispostos a receber sugestões e a melhorar todos os procedimentos com base no feedback dos corredores; e um dos melhores calendários a nível internacional fazem desta equipa, a equipa correta para eu estar, nesta fase da minha vida.

PCM: Além de seres ciclista profissional és, ainda, Mestre em Engenharia Mecânica tendo fundado a AeroEdge, que se especializa em aerodinâmica. Quão importante é para ti poderes interligar, numa simbiose perfeita, a tua formação académica e o ciclismo?
BG: Sempre foi um objetivo tentar aplicar os conhecimentos adquiridos na minha vida académica numa paixão como o ciclismo. Numa primeira fase, comecei a perceber que se aprendermos um pouco sobre fisiologia e biomecânica, podemos otimizar um pouco o treino e a posição para conseguirmos potencializar as nossas capacidades. Mas depois, vi que os conhecimentos na área de engenharia poderiam permitir-me fazer algo que para mim sempre me fascinou que era modelar e simular o desempenho em cima da bicicleta. Para mim, a engenharia nunca foi sobre aprender a mexer “em coisas”, mas perceber os fundamentos físicos que explicam os fenómenos e os equipamentos do quotidiano. Com estes fundamentos físicos, conseguimos criar modelos que representam um certo fenómeno e conseguir encontrar oportunidades de inovação e fornecer outras perspetivas sobre o que é ótimo ou o que pode ser melhorado. E foi assim que surgiu a AeroEdge. Eu comecei a aplicar estes conhecimentos em mim mesmo, e ainda bem que o fiz, pois, este trabalho permitiu-me fugir dos dogmas que sempre tive sobre o desporto, e criar a minha própria ideia sobre o que é o pico de performance humana e analisar o que é realmente importante no ciclismo. E, claro, a componente aerodinâmica é a parte mais importante no ciclismo, pelo que ter este conhecimento dá-me a segurança que chego ao início de cada corrida ao nível dos melhores do ponto de vista técnico ou com vantagem em relação aos demais.

Bernardo Gonçalves, com as cores da AeroEdge durante o Campeonato Nacional de Contrarrelógio de 2023.
Foto: João Fonseca Photographer / UVP – Federação Portuguesa de Ciclismo

Pergunta do Pedro Pinto, o último convidado do PCM Flash Interview: Na tua opinião, o que distingue o ciclismo de outros desportos?
BG:  O ciclismo é dos poucos desportos que a maior parte da população consegue compreender e que admira, pois, toda a gente sabe o que é andar de bicicleta. Portanto, as pessoas sabem que não é uma pessoa normal que se põe em cima da bicicleta e faz 100km todos os dias como se não custasse nada. O ciclismo permite juntar todo o tipo de espectadores. Aqueles que gostam da competição, aqueles que gostam da parte técnica e do equipamento, aqueles que gostam da cultura e das paisagens deslumbrantes por onde passamos e aqueles que simplesmente gostam de aproveitar uma tarde com os amigos e fazer umas apostas enquanto veem a prova a passar na estrada ou a veem na televisão. Algo que é fascinante é o facto de existir fair play dos espectadores ao celebrarem a passagem do ciclista que eles não querem que ganhe. O instinto humano faz-nos apoiar aqueles que sofrem e toda a gente sabe o quanto cada ciclista sofre para conseguir competir a este nível. E arrepia sempre que vamos a fazer uma subida e vemos o publico a gritar por ti, mesmo que não tenham ideia de quem tu és. Uma das outras coisas é que um desporto individual (ninguém pedala por nós), mas coletivo pois quando ganhamos, toda a equipa celebra como se a vitória tivesse sido individual. O ciclismo ensina muita coisa e às vezes esquecemo-nos de valorizar coisas como a amizade, a lealdade, a disciplina, o espírito de sacrifício, o trabalho em equipa e a capacidade de adaptação a cenários imprevisíveis. Todos estes pontos são fundamentais na vida de qualquer pessoa, e, no ambiente certo, nós conseguimos adquirir estes valores no ciclismo. Para mim, estes pontos acima mencionados importam tanto como o facto de o ciclismo ser um meio para termos a liberdade de irmos a qualquer sítio e de fazer desporto de uma forma segura, em que o risco de lesão é mínimo se não cairmos. E isso não acontece com a maior parte dos outros desportos.

PCM: Qual achas ser a tua maior característica como ciclista?
BG: Um dos principais problemas que todos os atletas enfrentam no desporto é que nós tentamos alcançar os nossos sonhos desmedidos com recursos e capacidades limitadas. Portanto, saber como alocar os nossos recursos limitados para tentar atingir esses sonhos é um problema de engenharia/fisiologia que praticamente ninguém tem solução. No entanto, cada um tem as suas teorias e eu sempre tentei planear as minhas corridas e a minha carreira com base em dados concretos e não em suposições. Isso permitiu-me correr de uma forma diferente e fazer uma gestão exemplar de cada prova que faço. Às vezes, falho e rebento (aconteceu-me isso na prova de fundo do Campeonato Nacional de 2023), mas por norma o meu motor só desliga na meta e a minha equipa sabe que tem em mim, um dos corredores que normalmente “não falha” e está sempre lá quando a “coisa aperta”.

PCM: Como é que os teus companheiros de equipa te descreveriam?
BG: Nas palavras de Red Walters (colega de equipa) quando anunciamos que ia correr com a X-Speed United em 2024: “The hero we needed but didn’t deserve” (O herói que precisamos, mas não merecemos). Os meus colegas sabem que estou sempre lá para os ajudar e eles têm confiança completa em mim, pois sabem que na minha roda, eu nunca os deixo ficar mal, e que se for preciso os levo “com uma corda” até ao final. Eles sabem que se for necessário o Bernardo põe cara ao vento para os levar confortáveis durante uma corrida de 200km, e sabem que com o Bernardo, eles, irão fazer uma prova de nível superior ao normal, o que é algo que para mim me enche de orgulho, pois eles sentem muita tranquilidade na minha roda no pelotão e sentem a obrigação de sofrer até ao final quando têm alguém como eu a correr para eles em todas as provas.

Bernardo, à esquerda na foto, a celebrar, juntamente com a restante equipa da X-Speed United, a vitória em etapa de Red Walters, no Tour of Bulgaria.
Foto: Tour of Bulgaria

PCM: Que dia consideras ter sido o mais duro em cima da bicicleta?
BG: Eu já tive bastantes dias mesmo muito complicados, pelas quedas violentas que já tive. Mas o que é engraçado é que nem são esses os dias mais difíceis, pois normalmente a dor nesses dias é física e não mental. Apesar da parte visual ter muito impacto do exterior, a dor física e as mazelas saram rapidamente, e, às vezes, fazer uma corrida com uma fratura nem custa muito. Agora, quando a parte mental vai abaixo, aí é que é complicado. Fala-se pouco sobre o bem-estar psicológico e os stresses da vida dos atletas, e eu acho que a maior parte dos atletas falha neste aspeto, e é a razão de muitos abandonos precoces de grandes talentos no desporto em geral. Portanto, os dias mais duros para mim, foram em 2021 quando passei a maior parte do tempo a correr na Bélgica e em que ia para cada corrida desanimado e em que durante 7 meses terminar uma prova era raridade.

O próximo PCM Flash Interview está aí à porta com um novo convidado especial, não percam!

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