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PCM Entrevista: Gabriel Martins, nutricionista da Team Visma – Lease a Bike

Gabriel Martins é natural do Algarve e, além de ser um dos maiores nomes da nutrição desportiva em Portugal, foi nutricionista da Israel – Premier Tech nos últimos 3 anos e mudou-se recentemente para a Team Visma – Lease a Bike.

Nesta entrevista, discutimos o seu caminho até ao World Tour e a sua adaptação à equipa. Falamos do seu trabalho ao longo do ano e da experiência de trabalhar com Chris Froome, sujeito de “uma das maiores revoluções da nutrição desportiva”. Analisamos os últimos desenvolvimentos na área da nutrição desportiva e por fim, abordamos as dificuldades que os ciclistas podem ter em seguir as suas dietas, cada vez mais restritivas, e como os nutricionistas os apoiam nesse contexto. Descobre tudo sobre Gabriel Martins e a área da nutrição, cada vez mais importante no ciclismo, nesta entrevista!

O que te levou à nutrição? 

“É sempre a pergunta que fazem aos nutricionistas (risos). Tenho uma paixão por esta área desde a altura do secundário. O meu pai foi o responsável por me colocar o bichinho do ciclismo, mas ficou adormecido em mim até bastante tarde e confesso que, inicialmente, o meu objetivo era trabalhar com a nutrição no desporto em geral. Mais tarde, após passar por vários estágios, experimentar o futebol e experimentar nutrição mais clínica, decidi virar-me para o ciclismo e depois emigrar para Madrid e fazer mestrado na área, sempre com a ideia de me especializar no ciclismo e seguir este desporto mais de perto.” 

O mestrado em Espanha representou, assim, uma saída da zona de conforto para ti, especialmente com a mudança de país. Quais eram as tuas expectativas e como foi depois a realidade? 

“Sendo um mestrado que estava muito ligado ao Real Madrid e era muito promissor no corpo docente, com pessoas a nível espanhol e a nível internacional ligadas a vários desportos, eu tinha a ideia de que me podia aproximar e fazer um estágio nalguma equipa… estava muito enganado. O foco do mestrado não era tanto no ciclismo, mas no futebol, e os contactos não eram tantos como eu esperava. Assim, vi-me forçado a criar uma outra ponte de entrada no ciclismo, que foi o meu podcast. Era um podcast focado na nutrição no ciclismo e aí eu tinha liberdade para escolher quem convidar. Sabia quem eram os especialistas e foi só uma questão de sorte nos primeiros convidados, que, de forma muito simpática, aceitaram ser entrevistados por mim. A partir daí as coisas foram correndo bem e fui podendo entrevistar pessoas mais ligadas à área da nutrição e outros investigadores mais ligados ao desporto de endurance e ao ciclismo.” 

“Fuel the Pedal”, o podcast de Gabriel Martins sobre nutrição no ciclismo e no desporto.
Foto: Arquivo pessoal

O teu percurso no ciclismo partiu de um convite da Dana Lis, nutricionista da Israel Start-Up Nation (atual Israel – Premier Tech) e uma referência da área. Como surgiu esse convite e como reagiste? 

“Para contexto, a Dana Lis foi uma das convidadas no podcast, veio duas vezes, porque ela investigava um tema muito interessante a nível de digestão de hidratos de carbono nos desportistas de elite. Na altura, nós já tínhamos falado de um dia eu poder ajudá-la, por ela estar fora do país, continuando aliás a estar fora do continente europeu [na Califórnia, Estados Unidos]. Foi também uma sucessão de eventos com bastante sorte, porque a equipa ia fazer um training camp em Girona e, coincidentemente, eu estava aqui de férias. Fiz o campo completo, os 21 dias, e no final fui convidado a integrar a equipa. A minha primeira reação foi de surpresa; eu não esperava, esperava apenas dar algum apoio à equipa, mas naturalmente fiquei bastante contente com o convite. 

Foi uma grande reviravolta na minha carreira e na minha vida também, porque já estava a meio do meu doutoramento, tinha o meu trabalho na universidade e tinha sido convidado para ser docente. Mas decidi deixar tudo, decidi deixar o doutoramento – para ser sincero, não gostava muito do tema que estava a estudar, e o podcast era já o meu escape – e decidi apostar tudo em mudar-me para junto da equipa [em Girona] e aí começar uma nova etapa.” 

Gabriel Martins com a restante staff da Israel – Premier Tech.
Foto: Arquivo pessoal

Que estrutura encontraste na Israel – Premier Tech e como te enquadraste nela?  

“A estrutura que encontrei na equipa foi uma estrutura que ainda não estava habituada à presença do nutricionista. A Dana Lis fazia trabalho remoto e a presença do nutricionista fisicamente em corridas e training camps era algo muito novo. Portanto, foi um ‘cair de paraquedas’ que gerou resistência na implementação de alguns protocolos, também face à minha inexperiência: uma coisa é sentirmo-nos confortáveis a falar de ciclismo e a fazer pesquisa científica para um podcast; outra coisa é estar num contexto real a tentar implementar essas estratégias e vermos que há muitos passos que têm que ser levados a cabo – coordenar com os massagistas, para implementarmos as coisas num determinado protocolo, coordenar com os chefes de cozinha, para que os menus possam ser adaptados a cada etapa, e incorporar numa estratégia da equipa para rendimento num determinado dia, para que possamos ganhar a etapa. Todas estas questões eram novas, quer para o nutricionista quer para a equipa, e levou anos até que se pudéssemos limar as arestas. Mas este ano já foi mais fácil implementar certas estratégias, mais do que no ano em que cheguei à equipa.” 

Nas várias fases da época, tens diferentes funções e acompanhas diferentes atletas. No fundo, como é o teu trabalho? 

“No início da temporada, nós definimos o calendário de cada ciclista e com base nele, estabelecemos objetivos de composição corporal para os quais o nutricionista e o seu treinador têm que trabalhar em conjunto. Numa grande volta são oito corredores aos quais temos que dar toda a atenção, mesmo que existam outros programas que entrelaçam. Há equipas que têm mais do que um nutricionista e nesse contexto, é mais fácil, mas no nosso caso tínhamos [apenas] um nutricionista na maior parte do tempo e eu tinha que priorizar.  

Além dos objetivos de composição corporal, temos que ter um menu estabelecido com o chefe de cozinha que estará a acompanhar a equipa, e o chefe tem que pedir ao hotel – considerando que estamos a viajar de hotel em hotel – todos os ingredientes necessários para esse menu. Vamos recebendo os ingredientes do hotel e aí começa todo o trabalho. Diariamente, nós temos que fazer o plano de nutrição dos atletas para o dia seguinte, portanto tentamos adaptar-nos à mudança constante de estratégia por parte da equipa. A maioria dos colegas trabalha de maneira muito similar: temos um programa que se chama Training Peaks para onde vão todos os esforços dos corredores; nós temos acesso a esse programa, vemos qual foi o gasto energético de cada ciclista e, com base nisso, tentamos fazer ajustes. 

Nós definimos o pequeno-almoço até ao momento da recuperação e cada vez que o atleta chega da etapa, olhamos para o seu ficheiro e tentamos ajustar para o jantar, segundo aquilo que ele gastou e que comeu em cima da bicicleta, a nível de gramas de hidratos de carbono por hora. Tentamos dia a dia garantir que o atleta tem as suas necessidades energéticas cobertas pelos alimentos que nós estabelecemos, e analisamos com a equipa de rendimento o que correu bem, o que correu mal, se o atleta não comeu a quantidade de hidratos de carbono recomendada, ou se comeu acima daquilo que era esperado. Portanto, é um trabalho diário em que se tem que fazer uma análise atleta a atleta, em coordenação com a equipa de rendimento e com os diretores desportivos, para que possamos fazer adaptações e comunicar ao atleta que tem de estar mais atento ou que precisa continuar a seguir as recomendações.” 

Após o fim de uma etapa ou clássica, é necessário comparar as calorias gastas com aquelas que estavam previstas o ciclista gastar. Como funciona este processo? 

“Nessa altura, damos um enfoque muito grande ao momento de recuperação – a primeira hora. Nós tentamos que, nesse momento, o atleta tenha uma ingestão de hidratos de carbono muito alta, ou através da refeição que temos já preparada, ou através das bebidas de recuperação – que são misturas de hidratos de carbono e de proteínas – ou de outras bebidas com conteúdos de polifenóis elevados [compostos antioxidantes e anti-inflamatórios comuns em frutas e vegetais], e também de alguma proteína, mas a proteína hoje tem um papel secundário, porque nestes atletas é muito fácil atingir níveis de proteína altos. Aliás, é muito fácil atingir níveis altos de tudo, porque estamos a falar de 7/8 mil calorias por dia, quando não são 9 mil em casos de etapas de 6 horas ou mais.” 

Daniel Lima, na sua primeira temporada no estrangeiro, aprendeu sobre nutrição com Gabriel Martins.
Foto: Nicolas Mabyle/DirectVelo

Há um ciclista português na Academia da Israel – Premier Tech, que é muito jovem e tem muito potencial. Já tiveste a oportunidade de trabalhar com o Daniel Lima? 

“Sim, tenho acompanhado o percurso do Daniel. É um atleta pelo qual, por ser do mesmo país, temos outra ligação, e por ser algarvio ainda mais. Tenho tentado dar alguma ajuda, mas sou apenas um nutricionista e estou mais virado para a equipa principal, o Daniel faz parte da equipa sub-23. Mas sobretudo para os campeonatos nacionais e para outros campeonatos onde o Daniel esteve presente, tentei dar o máximo de apoio possível, e espero que tenha sido uma experiência de grande aprendizagem para ele. Também na equipa continental essa componente [de aprendizagem] é mais forte, porque os atletas estão a experienciar tudo como novo, incluindo a parte da nutrição. É sempre uma experiência enriquecedora para as duas partes, trabalhar com a equipa continental e com o Daniel.” 

Chris Froome conseguiu um marco para a nutrição desportiva na etapa 19 do Giro d’Italia 2018.
Foto: Fabio Ferrari/LaPresse

Todos os caminhos da nutrição no ciclismo vão dar à etapa mítica do Chris Froome no Giro d’Italia 2018, que foi um grande marco para a área. Consegues explicar essa etapa do ponto de vista da nutrição? 

“Eu posso dizer que [essa etapa] deu material interessante para construir aulas (risos), mas com o conhecimento e a experiência que temos hoje, já não surpreende nenhum colega que trabalhe com ciclistas profissionais. Logo na altura, tive a oportunidade de entrevistar o James Morton [nutricionista da Team Sky em 2018] no podcast e discutimos o assunto.  

Em primeiro lugar, foi necessária uma grande coordenação com todo o staff disponível, posicionando-os nos vários pontos de abastecimento ao longo do percurso. Isso é algo que hoje em dia fazemos para cada etapa; há uma importância muito grande dos abastecimentos e da quantidade de hidratos de carbono que temos que dar a um determinado desportista. Depois, o Chris ingeriu uma grande quantidade de hidratos de carbono ao pequeno-almoço (arroz, panquecas com mel, ovos, sumo de laranja), tendo depois rematado com o que, na altura, se achava um valor absurdo de hidratos de carbono: 95 gramas por hora durante a etapa, num total de 500 gramas em cima da bicicleta, com uma concentração maior nos minutos anteriores ao ataque e até terminar a etapa, ao longo das três montanhas que ele superou com bastante êxito. 

Esses números, na altura, surpreenderam o público, simplesmente porque não se falava muito disso; agora, em conversa com colegas já experientes, sei que isso já se fazia noutras equipas. Hoje, tudo isto é prática comum e temos ciclistas aos quais recomendamos atingir 100/130 gramas por hora, sobretudo especialistas em clássicas como o Tour de Flandres ou o Paris-Roubaix, onde a potência (em watts) é a mais alta de todas e como tal, as quantidades de hidratos de carbono são absolutamente brutais, muito mais do que em etapas de montanha como a etapa 19 do Giro 2018.” 

Anos mais tarde, o Chris Froome entrou na Israel – Premier Tech. Como foi trabalhar com um ciclista que conseguiu, além de muitas vitórias importantes, um marco da nutrição desportiva?  

“Como disse, o Chris foi parte de uma das maiores revoluções da nutrição desportiva na Team Sky, com os ensinamentos do James Morton, e desenvolveu naturalmente um grande interesse pela área da nutrição, sendo uma pessoa extremamente profissional na forma como o faz. Tem um grande interesse em crescer e em aplicar novos conhecimentos de nutrição, tem sempre bastantes perguntas e como fruto da experiência, é bastante autónomo na forma de trabalhar e controlar a sua alimentação. De facto, foi um gosto trabalhar com ele!” 

Desde esse marco assinalado pelo Chirs Froome, sentes que a nutrição tem tido mais destaque no ciclismo e que, com isso, têm surgido mais oportunidades para os nutricionistas? 

“Eu penso que sim. A tendência que vejo nos últimos anos é uma procura muito superior e sempre crescente por nutricionistas nas equipas. Antes víamos apenas um nutricionista em cada equipa, agora vemos equipas com 2/3 nutricionistas e temos o caso da Team Visma – Lease a Bike, que tem 5/6 nutricionistas a trabalhar com eles (alguns com perfil misto de nutricionista e cozinheiro). Inicialmente, o nutricionista era um profissional que as equipas contratavam para estar em contacto [remoto] com os ciclistas e lhes dar os planos, não para estar presente nas corridas e nos training camps. Entretanto, passou a ser alguém que é incorporado na equipa desde o início da temporada, formando-se núcleos que envolvem cada ciclista e onde o treinador, o diretor desportivo e o nutricionista são incorporados. [Em suma], há um muito maior envolvimento do trabalho do nutricionista e espero que continue a crescer.” 

Com novas oportunidades para os nutricionistas, têm surgido também novas teorias na área da nutrição (dieta cetogénica e dieta paloelítica). Alguma destas teorias tem mostrado evidência positiva para atletas de alta competição? 

[A Dieta Cetogénica é rica em gorduras e pobre em hidratos de carbono e proteínas, tendo por finalidade simular um jejum prolongado. A Dieta Paleolítica baseia-se em alimentos pouco processados (vegetais, frutas, sementes, ovos…) e como o nome indica, procura assemelhar-se à alimentação humana durante o período histórico do Paleolítico]. 

“A resposta curta é não. A resposta longa é que o contexto do ciclismo muda constantemente e tanto temos momentos em que precisamos de trabalhar mais na redução da composição corporal, como temos momentos em que precisamos de treinar mais o intestino para tolerar quantidades muito altas de hidratos de carbono; tanto temos momentos em que a recuperação tem que ser o mais rápida possível, como temos momentos em que temos que trabalhar na flexibilidade metabólica do ciclista, para que ele possa ser eficiente ao utilizar diferentes substratos energéticos (gorduras e hidratos de carbono). Portanto, temos diferentes contextos que requerem diferentes abordagens. Hoje em dia, o nutricionista de ciclismo precisa de ter uma caixa de ferramentas com diferentes chaves, fazendo diferentes adaptações ao contexto onde está a trabalhar.” 

Pode-se dar o caso de, em algum momento, termos que reduzir as quantidades de hidratos de carbono e aumentar as quantidades de gordura, mas nunca chegando ao ponto da [dieta] cetogénica. Hoje em dia, é evidente que a dieta cetogénica não é compatível com o rendimento e diria que, mesmo do ponto de vista de adaptações metabólicas, não é uma estratégia que pretendamos utilizar. Há sim uma evidência na priorização de hidratos de carbono, em que os vamos aumentando ou diminuindo para não só maximizar certas adaptações metabólicas, mas também adaptar o gasto energético, primeiro em treino para depois aplicar à competição. Os próprios ciclistas sabem que se não ingerirem hidratos de carbono suficientes, acabou para eles. Isso é o grande pilar do seu rendimento e assim, é o grande pilar da nutrição do ciclismo. Portanto, no nosso trabalho, acabamos por ser contabilistas do gasto energético e dos hidratos de carbono que os ciclistas devem ingerir, e eles sabem disso.” 

Juan Ayuso causou ‘indignação solidária’ nos fãs de ciclismo quando partilhou a sua dieta.
Foto: Tim de Waele/Getty Images

A maioria dos atletas já está informada sobre as regras básicas das dietas, que são transversais a todos. Há uns meses atrás, o Juan Ayuso partilhou a sua dieta, bastante restritiva e com apenas 4 dias de ‘liberdade’ num ano, tendo por isso causado alguma indignação nos fãs de ciclismo. Existe a necessidade de um ciclista seguir uma dieta deste tipo? 

“É preciso ver o contexto em que as recomendações foram feitas. Eu tenho um grande respeito e consideração pelo meu colega da UAE Team Emirates, o Gorka Prieto, e sei que ele faz um trabalho excelente. Muitas vezes, é complicado quando somos deparados com exemplos radicais de dietas de atletas. Nas redes sociais, o Chris Froome foi um caso disso. Na altura, quando ele publicou uma foto do seu pequeno-almoço (com nada mais do que abacate e salmão fumado), toda a gente começou a dizer que ele estava a restringir hidratos de carbono, e ele teve de vir a público dizer que aquilo que mostrou foi no contexto de um dia em que não ia treinar muito, logo não ia ter uma necessidade alta de hidratos de carbono. Eu sou defensor de baixos, médios e altos níveis de hidratos de carbono, sempre dirigidos pela necessidade do ciclista. 

O contexto é chave a tudo isto. Temos de saber qual foi o contexto em que o Juan fez aquela refeição e o Gorka fez aquelas recomendações, porque pode-se dar o caso – e acredito que seja o caso – de que não fosse necessária uma quantidade de hidratos de carbono tão alta naquele dia específico. Os ciclistas, tal como muitos outros desportistas, têm dias de descanso, e nesses dias, ou nós promovemos um défice calórico, o que é complicado não havendo muita atividade física e se as necessidades energéticas são baixas, algumas das refeições vão parecer muito restritivas nas fotos, ou nós mantemos um balanço energético normal. Em qualquer uma destas situações, podemos ter refeições com quantidades, quer de hidratos de carbono, quer de outros nutrientes, bastante reduzidas.” 

Por vezes, a restritividade excessiva de algumas dietas, bem como o sentido de obrigatoriedade de segui-las, pode causar distúrbios alimentares aos ciclistas, sendo neste contexto que a relação entre nutrição e saúde mental se torna imperativa. Mas primeiro, como é que essa situação pode afetar o rendimento? 

“Todos os desportos com influência do peso têm este lastre, que é a preocupação do atleta em querer controlar a sua composição corporal e obter o menor peso possível. Portanto, há sempre um anjinho e um demónio aqui e aqui [apontando aos ombros]: de um lado, o demónio diz ‘cuidado, eu tenho que estar leve’ e do outro lado, o anjinho diz ‘tens de comer hidratos de carbono para teres combustível suficiente para subir aquela montanha.’ É na cabeça do ciclista, sobretudo em momentos de maior pressão, que isso se nota mais, e continuamos a ter casos de ciclistas que estão tão preocupados com a sua composição corporal que fazem restrições impensáveis com o conhecimento que temos hoje.  

O nutricionista tem o trabalho fundamental de identificar esses casos, logo de início, e tentar evitá-los, ao fazer uma monitorização mais próxima do atleta. Depois, pouco a pouco, há que tentar convencê-lo – é mais fácil dizer do que fazer – que há um ponto de equilíbrio entre uma composição corporal adequada e uma ingestão dos hidratos de carbono necessários, senão não vai servir de nada. Infelizmente, continuamos a ter uma prevalência elevada de distúrbios alimentares no ciclismo, o que demonstra a componente fundamental da nossa atuação para controlar essas situações.” 

Jonas Vingegaard comemorou a sua vitória no Tour 2023 com uma pizza.
Vídeo: YouTube/INFOcHD

Para compensar a restritividade das dietas ao longo da temporada, vemos cada vez mais refeições de comemoração (pizzas, hambúrgueres…) no final das grandes voltas. Quão importantes são estes momentos para os ciclistas? 

“São fundamentais. Uma vez que cheguei ao ciclismo de ‘paraquedas’, não conhecia a necessidade dessa refeição, [preocupava-me apenas com] seguir as recomendações e, nos dias de descanso, continuar a fazer as coisas de maneira equilibrada; não me punha na pele dos ciclistas e não verificava que, de facto, existe a necessidade de algum escape. Porque imagine-se comer as mesmas refeições ao longo de 21 dias, no caso de um grand tour; por mais que nós tentemos ‘dar cor’ aos pratos, adicionar diferentes tipos de vegetais e cozinhar hidratos de carbono de diferentes maneiras, há um fator de monotonia, com aquilo que se chama ‘flavor fatigue’ [fadiga dos sabores].  

Esses momentos, em alguns dias de descanso ou quando acaba um grand tour, são parte da flexibilidade que nós, enquanto nutricionistas, precisamos de ter, até pela forma como somos vistos. Sermos vistos como ‘nutricionistas restritivos’ não faz nada a nosso favor, só nos prejudica e faz com que o atleta tenha uma visão nossa como ‘polícia dos alimentos’ em vez de ‘pessoa que está aqui para me ajudar a atingir, de maneira equilibrada, os meus objetivos’. O que nós tentamos fazer sempre é minimizar os danos desses dias flexíveis. Por exemplo, há dias em podemos ter um hambúrguer com batatas fritas, então tentamos com que as batatas fritas sejam no forno em vez de fritas em óleo e que o hambúrguer não tenha muitos ingredientes como bacon, que só aumentaria o seu valor energético; se for pizza, tentamos fazer com que seja feita pelo nosso chefe de cozinha. Logo, há maneiras criativas de dar aos ciclistas aquilo que eles precisam: algo diferente (e saboroso) para se distraírem, mas ao mesmo tempo algo controlado, para que consigamos o melhor de dois mundos.” 

Apesar do contributo dos nutricionistas para evitar distúrbios alimentares mais graves, a frustração acumulada pelos ciclistas, sobretudo durante uma grande volta, pode levá-los a comer ‘às escondidas’. Como pode um nutricionista lidar com essa situação? 

“Os ciclistas são seres humanos, como quaisquer outros e que, como muitos outros, têm frustrações e muitas vezes as descarregam nos alimentos. É justamente isto que se conecta ao ponto que fizemos anteriormente: se eles virem que nós temos flexibilidade e que se podem abrir connosco sobre essa flexibilidade, nós podemos estar perto deles. [Um exemplo] de um ciclista que se abre com o seu nutricionista: ‘Olha Gabriel, eu ataquei a granola e agora sinto-me um bocado culpado, mas aconteceu e era algo que, na altura, senti que precisava de fazer porque estava frustrado.’ Se o atleta já comeu hidratos de carbono suficiente com isso que fez, conseguimos utilizar o jantar para fazer um ajuste; não há problema nenhum e ele fica descansado. É importante dar-lhes essa compreensão e, a partir daí, tentarmos trabalhar com eles. É muito bonito quando chegamos ao ponto em que eles sentem que se podem abrir connosco e sabem que nós vamos compreender, gera-se uma honestidade que facilita muito o trabalho. Felizmente, neste último ano, conseguimos atingir isso com a maior parte dos ciclistas.” 

“Os ciclistas são seres humanos, como quaisquer outros” – Gabriel Martins com Krists Neilands, ciclista da Israel – Premier Tech.
Foto: Arquivo pessoal

Esse último ano fecha a tua primeira grande experiência no ciclismo profissional: 3 anos como nutricionista da Israel – Premier Tech. Que balanço fazes da experiência? 

“De um modo geral, o balanço é positivo. Foi a minha primeira grande experiência e tive muita sorte mesmo em poder trabalhar com alguns dos melhores atletas do ciclismo atual. Foi um grande choque ao nível da aplicação de conhecimentos teóricos e daquilo que eu achava que seria trabalhar no ciclismo, para aquilo que na realidade é trabalhar com o ciclismo e que implica pôr em prática esses conhecimentos. Foi também uma lição de humildade, porque temos que ter a noção de que nunca vamos conseguir aplicar a 100% da nossa ideia inicial, muitas vezes vamos contentarmo-nos com 70/80%. Fazer face a essas situações, de uma maneira equilibrada, requer estofo mental e fez-me crescer. Portanto, foi uma experiência muito gratificante: estou mesmo muito grato à Israel – Premier Tech pela oportunidade que me deu! Agora é o momento de abraçar novos objetivos e maneiras de trabalhar, e esperemos que possa ser o passo seguinte na minha maneira de ver o ciclismo. Daqui a 10 anos, talvez eu fale de maneira completamente diferente daquela que falei hoje nesta entrevista.” 

Depois de três anos como nutricionista na Israel – Premier Tech, é tempo de Gabriel Martins abraçar um novo desafio: “É para mim uma enorme satisfação fazer parte da equipa Team Visma – Lease a Bike e integrar um dos melhores e mais avançados departamentos de nutrição do World Tour. É um grande desafio e uma oportunidade de crescimento profissional incrível pela qual estou muito grato e espero poder corresponder da melhor forma e crescer com esta grande equipa.” 

Agradecemos a Gabriel Martins a sua disponibilidade para nos conceder esta entrevista e desejamos-lhe boa sorte na Team Visma – Lease a Bike!

Escrito por Vasco Serrano & Carla Velhinho

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