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O Patrão ficou louco?

Mesmo com um ano de 2021 de grande sucesso para a Deceunick – Quick Step, a vida, principalmente com o teclado e o microfone à frente, não foi fácil para Patrick Lefevere, um dos históricos e célebres patrões de equipas World Tour do mundo. Não é propriamente uma novidade que o belga gosta de ser muito vocal nas suas críticas ao mundo do ciclismo, mas, normalmente, as críticas eram sempre de dentro para fora e em defesa da sua equipa. Criticar decisões de organizações, de comissários, contestando rumores de contratações e, talvez a mais dura das críticas, quando afirmou que Dylan Groenewegen deveria ser preso na sequência do acidente com Fabio Jakobsen na Volta a Polónia de 2020 – pode até não ter sido de forma literal, mas a impressão que fica não é a melhor. Este ano tudo tomou um outro nível, com Lefevere a usar as suas redes sociais e especialmente a sua coluna no Het Niewsblad para comentar os assuntos internos da sua equipa e, de forma surpreendente, a criticar publicamente alguns dos seus atletas.

Durante este ano, pudemos ver Lefevere a comentar a saída de João Almeida, atacar o agente do ciclista português, e abrir, gratuitamente, uma guerra na liderança para o Giro entre o português e Remco Evenepoel. Afirmar que o Tour de France seria demasiado duro para Mark Cavendish e, mais recentemente, que o britânico não poderia querer aproveitar-se da equipa na altura das negociações do contrato, uma vez que foi a Quickstep que “salvou a pele” de Cav. O capítulo principal vem, claro, da novela com Sam Bennett, onde o nível do discurso bateu em mínimos históricos. Foram proferidas tiradas comparando a transferência do irlandês para a BORA – hansgrohe a “uma mulher vítima de violência doméstica que volta para o marido agressor” ou até, mais gráfico ainda, que Bennett estaria playing with my balls in public (a tradução é escusada, toda a gente entende).

Long time ago

Sabemos que a equipa de Lefevere é uma das mais fortes do pelotão mundial e que todos os anos, apesar da saídas e entradas, consegue apresentar um dos plantéis mais competitivos do World Tour, fazendo corredores render a um nível fantástico, mesmo quando nada o faria prever (veja-se o caso de Cavendish este ano). Nada disso, porém, dá a Patrick Lefevere qualquer legitimidade para fazer o tipo de afirmações que tem vindo a fazer nos últimos tempos, que já extravasou há muito a tolerância de ser apenas um excêntrico, expondo os seus corredores na praça pública e usando o seu estatuto principalmente para enfraquecer a outra parte durante processos negociais. O facto de o belga ter uma coluna semanal num dos jornais mais lidos do seu país é, por si só, um sintoma de quão pequeno ainda é o mundo do ciclismo comparado com outros, nomeadamente o do futebol, que nos é mais próximo. É como se Lefevere fosse o ator principal do filme e estivesse ao mesmo tempo no júri para decidir quem leva o Óscar. Já alguém imaginou o que seria um presidente de um dos três grandes ser cronista de um jornal desportivo em Portugal?

A verdade é que Lefevere não parece ser uma personagem que lide bem com concorrência e com quem desafia o seu poder, apesar disso sempre pareceu capaz de ultrapassar o facto de outras equipas levarem algumas das suas estrelas, deixando bem claro que não entra em loucuras ou leilões por corredores, nem está para aturar a “conversa fiada” dos agentes. Portanto, se tem de contar com a “boa vontade” de corredores e agentes para abdicarem de um melhor salário em favor do projeto desportivo da Deceunick – Quick Step, não ajuda muito que o patrão ande publicamente a denegrir os seus ciclistas, caso contrário corre o risco de ver as equipas milionárias, como são a INEOS ou UAE – Team Emirates, a roubarem-lhe mais corredores. Entre os adeptos criou-se nos últimos anos a ideia, quase que como uma verdade absoluta, de que quem sai da Quick Step nunca mais é o mesmo. E se nos casos como Elia Viviani ou Fernando Gaviria isso pode até ser verdade – seria aqui injusto contar Gilbert e Terpstra que saíram já na parte final das suas carreiras -, por outro lado corredores como Maximilian Schachmann, Daniel Martin ou Enric Mas continuaram a ter resultados de grande nível, em alguns casos até atingindo os melhores resultados da sua carreira fora da estrutura belga, o que mostra que esta teoria está longe de ser totalmente correta.

Viviani e Schachman tiveram sortes diferentes desde que abandonaram a Quickstep de Lefevere

É hora do “tio Pat” conter o seu discurso e parar de agir como um intocável a quem os ciclistas devem tudo e mais alguma coisa, como se na relação corredor-equipa só o primeiro saísse beneficiado. Se Cavendish recuperou fulgor com a Deceunick-Quick Step não é menos verdade que a equipa ficará sempre marcada como a equipa onde o Manx Missille igualou o recorde de vitórias de Eddy Merckx no Tour de France. A força da alcateia (“Wolfpack”, em inglês) está nos números e não no autoritarismo do chefe. É a quantidade de ótimos ciclistas que faz a equipa ser grande. O sucesso desportivo não justifica estes devaneios do patrão. Qualquer dia Lefevere passa de bestial a besta, de um gestor inteligente para um patrão que não passa de um velho senil.