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“Se o Mark Cavendish não acreditasse que poderia escrever história, teria parado de correr” – Entrevista com Vasilis Anastopoulos

“Se o Mark Cavendish não acreditasse que poderia escrever história, teria parado de correr” – Entrevista com Vasilis Anastopoulos

O novo Chefe de Performance da Astana Qazaqstan Team acredita que o ‘Manx Missile’ vai quebrar o recorde de vitórias em etapas do Tour de France.

O ano era 2021. Mark Cavendish preparava as últimas corridas da temporada, mas num local incomum para fazê-lo. Ainda que as falésias costeiras e as ruínas antigas da Grécia atraiam turistas de todo o mundo, essa paisagem raramente é associada a ciclistas, muito menos aos melhores do mundo. Contudo, não foi por acaso que Cavendish esteve entre os mitos e as lendas da civilização helénica. O convite para treinar na Grécia partiu do seu treinador da época e um grego: Vasilis Anastopoulos.

Mais do que ciclista e treinador, os dois são amigos próximos desde que Cavendish ingressou na Deceuninck – Quick Step, quando a preparação para a temporada de 2021 já estava adiantada. “Ele chegou tarde à equipa, então pediram-me para treiná-lo e foi assim que a nossa relação começou”, explica Anastopoulos.

Esta é uma parceria que rendeu 15 vitórias ao corredor britânico nos últimos 3 anos. 3 anos, porque apesar do intervalo de um ano em que estiveram em equipas diferentes, Cavendish continuou a mandar mensagens ao seu treinador. “Tivemos sempre contacto sobre várias coisas, as coisas que aconteciam no ciclismo, como é que ele estava nas corridas, nunca parámos de comunicar e agora temos a oportunidade de reunirmos novamente e continuar por mais um ano.”

À medida que a temporada de 2024 se aproxima, o sprinter britânico e o seu treinador estão a trabalhar juntos mais uma vez, desta vez na Astana Qazaqstan Team, para garantir um resultado transcendente numa carreira já imaculada: vencer a 35ª etapa, recorde, no Tour de France.

Mark Cavendish in the Tour, 2023 (Image credit: SprintCyclingAgency)

Vasilis, o Grego

Antes de aprofundarmos o grande objetivo de Cavendish, temos de deixar claro que ele não é o único a beneficiar da parceria. Na verdade, foi o ciclista britânico quem inspirou Vasilis Anastopoulos a avançar com um dos seus maiores projetos. “Tens um país muito bom, com estradas e paisagens muito bonitas, então por que não começas uma Volta à Grécia?” Cavendish sugeriu durante um campo de treinos na Grécia, e após uma reunião com o Ministro do Desporto do país, estava feito.

O Tour of Hellas voltou à vida em 2022, mas apesar do “bom sucesso” da primeira edição, foi a segunda edição em 2023 que teve um significado especial para Anastopoulos. “Foi muito bom ver a corrida novamente ao mais alto nível, também porque fui o último vencedor grego do Tour of Hellas em 2003 e comemorámos os 20 anos dessa vitória.” Mais do que o triunfo na classificação geral, ele recorda a vitória na etapa da sua cidade natal, Megalopolis, com todos os amigos e familiares na assistência.

Antes de treinar ciclistas, Vasilis Anastopoulos era – e ainda é, em muitos aspectos – um ciclista. “Comecei a andar de bicicleta muito cedo, porque havia um clube de ciclismo à minha porta, e continuei a pedalar até aos 35 anos.” Em 2002, ele fez história ao assinar com uma equipa de ciclismo austríaca, tornando-se assim no primeiro corredor profissional da realidade grega. Questionado sobre como se sentiu naquele momento, ele conta que “na altura foi algo muito estranho. Ninguém sabia realmente o que era o ciclismo profissional, era um grande desafio. Mas claro, sinto-me honrado por ter sido o primeiro profissional na história do ciclismo grego.”

Vasilis Anastopoulos vence o Tour of Hellas, 2003 (Crédito: Tour of Hellas)

Nos últimos 20 anos, Anastopoulos deu o exemplo que permitiu a outros jovens gregos seguirem as suas pisadas e em 2024 a Grécia estará mais uma vez representada no pelotão profissional, já que Georgios Bouglas foi recentemente anunciado como ciclista da Burgos-BH. “Antes dele foi o Ioannis Tamouridis, que assinou com a Euskaltel – Euskadi e é um grande amigo meu.” Dois ciclistas gregos em equipas espanholas com uma diferença de 10 anos, uma “boa coincidência” observada pelo próprio Anastopoulos.

Quando questionado sobre a sua melhor memória em cima da bicicleta, Anastopoulos responde sem hesitação. “Uma vez ganhei uma etapa do Tour of Rhodes, quando era uma prova 2.3, batendo o Kurt-Asle Arvensen e o Fabian Cancellara num sprint apertado; um grande momento na minha carreira como ciclista.” Foram memórias poderosas como essas que cultivaram nele um forte desejo de revigorar essas provas, sonho que se concretizou com a ajuda do seu grande amigo Mark Cavendish.

Voltando ao Tour of Hellas deste ano, damos conta da primeira de três ligações entre Portugal e a Grécia, através do vencedor da prova Iúri Leitão. Anastopoulos acompanhou de perto a corrida e as vitórias do sprinter português despertaram o seu interesse. “Os sprints que ele fez lá foram realmente impressionantes. Além disso, os seus resultados na pista são muito bons, ele é Campeão Europeu e Campeão Mundial. Gosto dele e acho que tem muito potencial.”

Vasilis Anastopoulos faz uma dança tradicional grega, 2023 (Crédito: X/Soudal Quick-Step)

Treinar a elite

Depois de terminar a sua carreira como ciclista profissional, Vasilis Anastopoulos começou imediatamente a trabalhar como treinador, transmitindo o seu conhecimento à próxima geração de ciclistas gregos… e mais além. “Trabalhei com a seleção grega e depois com a equipa continental [SP Tableware], antes de ingressar na SEG Racing Academy, projeto que começou em 2005, em todas as categorias Sub-23, para treinar a nova geração de ciclistas [internacionais].”

Do Peloponeso para uma das melhores academias de ciclismo do mundo, trabalhando com nomes como Fabio Jakobsen, Cees Bol, Ide Schelling ou Stephen Williams. “Tantos bons ciclistas, que mais tarde fizeram carreiras muito boas”, nas palavras de Anastopoulos. Assim, na SEG Racing Academy, ele foi fundamental para moldar todos esses jovens talentos nos grandes ciclistas que são hoje. No caminho para o topo, é importante que eles “tenham paciência, porque hoje em dia todo a gente se quer tornar profissional o mais rapidamente possível; e olhar para o potenciómetro o mínimo possível. Aproveitem também o ciclismo antes que se torne numa obsessão, isso é o mais importante.”

Desafiámos então Vasilis Anastopoulos a nomear o talento mais entusiasmante com quem teve a oportunidade de trabalhar. “Definitivamente ciclistas como o Edoardo Affini, que é um super doméstico da Jumbo-Visma e um excelente contra-relógio, o Fabio Jakobsen claramente, e o Cees Bol.” Mas como bom treinador que é, a lista é tudo menos exclusiva. “Estes são alguns dos ciclistas que me impressionaram em todos estes anos, mas se tiver de escolher alguns nomes, serei injusto com os outros.”

Entre os formados da SEG Racing Academy está o português Tiago Antunes, que atualmente corre pela Efapel Cycling, e aí surge a segunda ligação de Anastopoulos a Portugal. “Trabalhei com o Tiago durante um ano, antes de ir para a Quick-Step, ele era um dos ciclistas do meu grupo. Também fiquei impressionado, e o Tiago é fixe!”

Vasilis Anastopoulos com ciclistas da SEG Racing Academy (Crédito: X/Vasilis Anastopoulos)

Foi após 5 anos de uma gestão da performance da próxima geração de ciclistas internacionais que Vasilis Anastopoulos recebeu uma proposta para ingressar na Deceuninck – Quick Step, o que fez para a temporada de 2020. “Tenho que estar grato oa Koen Pelgrim, o treinador principal que me escolheu e me convidou para fazer parte da equipe, e, claro, ao Patrick Lefevere, que é um grande modelo para o ciclismo; não é por acaso que ele dirige uma das equipes de maior sucesso do pelotão nos últimos 20 anos.”

A parte mais significativa do sucesso da equipa belga reside na sua forte identidade, baseada numa filosofia de trabalho de equipa, união e um propósito comum. “Todos os diretores desportivos e os treinadores trabalham realmente como uma família. O lema ‘Wolf Pack’ é realidade.” Anastopoulos encaixou imediatamente nesta filosofia e, olhando para os 4 anos em que trabalhou lá, tem uma gratidão imensa. Durante esse tempo, voltou a treinar grandes ciclistas, mas contrariamente à crença comum, argumenta que todos os ciclistas que encontrou possuem a “dedicação, profissionalismo e talento” necessários para prosperar. “Não há diferença [entre grandes ciclistas e bons ciclistas]. Só precisamos de descobrir quais são as necessidades e características especiais do ciclista, para fazer o melhor possível por ele e pelo seu desenvolvimento.”

Também na Quick-Step, o convívio de Anastopoulos com portugueses atingiu o seu ponto mais alto, enquanto discutimos a sua terceira e última ligação a Portugal. O treinador grego não só trabalhou sob a supervisão direta de Ricardo Scheidecker, o então chefe de performance da equipa, como também orientou João Almeida em vários campos de treino, incluindo o da Sierra Nevada que antecedeu a sua incrível jornada de 15 dias de Maglia Rosa no Giro 2020! “Tive um bom contacto com o João e até hoje mantemos uma relação muito boa. Estou muito contente de ter conhecido ambos.”

Questionado sobre João Almeida como atleta, Anastopoulos vai direto ao assunto. “Para mim o João pode ganhar uma Grande Volta. Ele é um grande talento e uma das pessoas mais calmas que já conheci; ele nunca entra em pânico. Além disso, não podes manter uma camisola por 15 dias se não tiveres o talento e a capacidade necessários.” Abstendo-se de comentar a mudança de abordagem no treino do voltista português, Anastopoulos deixa a garantia de que o seu ex-ciclista conta com “o melhor apoio do mundo” na UAE Team Emirates.

João Almeida na Deceuninck – Quick Step, 2021 (Crédito: Wout Beel)

Novos velhos desafios

No contexto da amizade entre Vasilis Anastopoulos e Mark Cavendish, torna-se óbvio que a mudança do grego para a Astana Qazaqstan Team, tal como os treinos de Cavendish na Grécia, não aconteceu por acaso. “Ele desempenhou um papel importante, especialmente no início da temporada quando me apresentou ao Alexander Vinokourov.” Apesar de tudo estar mais ou menos definido no início de julho, o destino ainda lhes pregaria uma peça. “Quando concordamos que eu me juntaria à equipa num contrato de 3 anos, o Mark anunciou que continuaria no próximo ano. Foi uma muito boa surpresa para nós.”

O boato de que Alexander Vinokourov tem grandes planos para revigorar a Astana Qazaqstan Team tem permeado no mundo do ciclismo, e a questão de saber se veremos o regressa da antigo Astana, que levou Vincenzo Nibali e Fabio Aru à glória nas grandes voltas, ou uma nova equipa focada em sprints e clássicas, desperta curiosidade nos fãs de ciclismo. “Para o próximo ano não é segredo que tentaremos ser protagonistas nos sprints. Queremos fazer bons resultados nas clássicas com o Ballerini e o Cees Bol, e no Tour de France vamos pelas etapas planas com o Cavendish. Além disso, com o Lutsenko, queremos ser bons nas Ardenas, nas etapas do Tour de France e depois nos Jogos Olímpicos. Esses são os três grandes objetivos para o próximo ano.”

Um princípio muito maior está por trás dos grandes objetivos da Astana Qazaqstan Team para 2024. “Quando pensávamos que o Mark iria parar [a sua carreira], o Vinokourov pediu-me para tentar mudar a filosofia e inovar os aspectos da performance” , enquanto a possibilidade de contratar um voltista permanece em cima da mesa para 2025.

Enquanto muitas equipas ainda estão em montagem, Anastopoulos já conheceu a sua nova casa. “Já tivemos uma reunião com toda a equipa [teambuilding] em Itália, para conhecer os novos ciclistas. Também tive que conhecer a staff e os outros treinadores, porque não conhecia ninguém.” Um plantel renovado, com 15 caras novas, que prometem entrar no primeiro estágio – marcado para o presente mês de dezembro, em Espanha – empenhados e com vontade de melhorar. “Para ser sincero, fiquei agradavelmente surpreendido com a recepção que tive por parte da equipa e do gerente [Vinokourov], e como eles queriam ouvir novas ideias e tentar algo diferente”, admite Anastopoulos com um sorriso optimista no rosto.

Mark Cavendish ganha a Etapa 21 do Giro, 2023 (Crédito: Luca Bettini/SprintCyclingAgency)

Com todas as coisas no seu lugar, torna-se mais séria a preparação para 2024, que será um ano decisivo para Mark Cavendish. Mas embora as grandes inovações possam ser uma condição necessária para o sucesso, as receitas antigas também funcionam. “Não fazemos nada fora do nnormal [nos treinos]. Focamo-nos em construir a resistência e depois trabalhamos muito nos sprints, porque o que ele precisa para vencer uma corrida é chegar o mais forte possível à chegada; é isso que tentaremos fazer a partir de dezembro.”

Ainda que possa parecer confuso e até contraditório, os sprints são apenas um componente na preparação de um sprint. “As etapas do Tour de France são realmente difíceis, por isso ele tem de ser capaz de sobreviver às subidas longas e aos dias longos, e ter energia no final das etapas.” A sobrevivência é uma grande parte de uma grande volta e isso está refletido na metodologia que Anastopoulos irá aplicar. “Vamo-nos concentrar em melhorar ao máximo a sua capacidade aeróbica e depois a sua capacidade de sprint durante a temporada.”

A preparação de Cavendish pode já estar em andamento há algum tempo, visto que Anastopoulos tem acompanhado o seu desempenho mesmo das linhas laterais. Paralelamente aos fãs de ciclismo, ele vibrou com a vitória que o amigo conquistou em Roma no Giro d’Italia. “Naquele dia ele teve pernas muito boas, o seu sprint foi muito bom, como na etapa do Tour de France onde ele teve uma avaria, mas ainda assim terminou em 2º [Etapa 7]; Estou convencido de que ele poderia ter vencido aquela etapa sem problemas mecânicos.”

Apesar da promessa dos bons resultados, algumas ressalvas têm de ser feitas. “Não devemos esquecer que temos que enfrentar a nova geração de sprinters: Philipsen, Jakobsen e também espero que o Ewan seja protagonista este ano. A competição será de altíssimo nível, como sempre acontece no Tour de France.” Mas Anastopoulos não está preocupado com as coisas que não pode controlar. “O nível do Mark no ano passado foi muito bom e vamos tentar melhorar um pouco mais para que seja suficiente no Tour de France. Queremos ter a certeza de que o Mark chegará lá na sua melhor condição.”

Olhando para o passado, para os muitos desafios que Mark Cavendish teve de superar nos últimos anos, uma palavra de apreço é inteiramente merecida. “Ele é um grande campeão, um grande lutador. Se ele não acreditasse que poderia conseguir escrever história, teria parado de correr.” Essa crença é partilhada não só entre Cavendish e o seu treinador, mas também com toda a equipa. “É por isso que a equipa contratou ciclistas para fazer o melhor comboio de lançamneto do mundo, com Mørkøv, Ballerini, Bol, ciclistas bons e experientes que podem levá-lo até aos últimos metros das etapas de sprint, onde caberá a ele terminar o trabalho.

O ciclismo é, acima de tudo, um esforço de equipa e os sprints, no âmbito do ciclismo, não são diferentes. Para que Mark Cavendish chegue aos metros finais, ele precisa de um comboio de lançamento coordenado na precisão de um relógio, algo que representou alguns desafios para a Astana Qazaqstan Team durante a temporada de 2023. Para melhorar é preciso “trabalhar juntos em dezembro e janeiro e fazer o máximo de corridas possível juntos, com toda a gente.. Ainda não temos ideia de como eles podem trabalhar juntos, mas veremos durante as corridas o que funciona e o que não funciona.”

O calendário até ao Tour pode ajudar a encontrar a melhor formação, mas um bom comboio precisa também de um bom maquinista. Aí entra Mark Renshaw. “A sua experiência, juntamente com a experiência do [Stefano] Zanini [diretor esportivo especializado em sprints], terá um papel importante em formar esse comboio.”

Voltamos a atenção para Vasilis Anastopoulos e a natureza do seu trabalho, que às vezes pode se tornar stressante. Mesmo que seja esse o caso, o grego descarta a possibilidade. “Não sinto nenhum stresse. Só quero ter certeza de que tudo corre bem este ano e que o Mark e os outros ciclistas têm a melhor preparação nos treinos e nas corridas que precisam de fazer.” Sabendo que deu o seu melhor, estará sempre preparado para o resultado. “Se o resultado vier saudamo-lo, mas se não vier temos que aceitar; estamos a falar de seres humanos, não de robôs.”

A crença é tão grande que podemos não estar a falar de um ‘se’, mas de um ‘quando’. Quando questionado se Mark Cavendish vencerá a sua 35ª etapa no Tour de France do próximo ano, a resposta de Vasilis Anastopoulos é um sólido “sim”. Terminando com essa forte convicção, agradecemos-lhe a disponibilidade em conceder-nos esta entrevista. Ou, como se diz na Grécia, efcharistó!

Vasilis Anastopoulos with Mark Cavenidsh, 2021 (Image credit: Facebook/Vasilis Anastopoulos)
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