A lenda colombiana sobre o regresso à competição, o novo papel na Movistar Team, e como mudou o ciclismo nos 10 anos da conquista do Giro 2014.
Nairo Quintana é uma lenda do ciclismo. O ciclista colombiano de 34 anos ganhou o Giro d’Italia em 2014, a Vuelta a España em 2016, e alcançou três pódios em participações consecutivas no Tour de France, entre 2013 e 2016. Depois de um período de hiato na sua carreira, na sequência de uma desclassificação por uso de tramadol, regressa à Movistar Team, a equipa que tanto sucesso lhe deu na sua carreira desportiva, parafraseando o próprio, com o Giro d’Italia como grande objetivo de temporada, volvidos 10 anos desde que vestiu a Maglia Rosa e ergueu o Trofeo Senza Fine.
Concebendo no Giro d’Italia 2024 a melhor ocasião para assinalar esse marco, uma vez que assinala também o regresso às grandes voltas que marcaram a sua carreira, a Portuguese Cycling Magazine teve o prazer de entrevistar Nairo Quintana. Mais do que uma conversa sobre o Giro e a temporada de 2024, aproveitámos a ocasião para revisitar a carreira do ciclismo colombiano, procurando entender como chegou aqui e agora.
Os grandes da história do ciclismo puxam os grandes temas, logo começamos pelo que mudou no ciclismo desde 2014. “Era 10 anos mais novo”, começa Quintana com boa disposição, considerando que “o ciclismo está a evoluir muito rapidamente e a competição é cada vez mais forte, com corredores que estão a emergir cada vez mais jovens”, o que promove a separação entre “os meus objetivos em 2014” e “os de agora”.
Recuando até aos objetivos de 2014, Nairo Quintana era apontado como o maior favorito a conquistar a Maglia Rosa, partindo com o estatuto de revelação adquirido no Tour 2013. Todavia, as duas primeiras semanas não lhe correram de feição; com quedas, alergias e um contrarrelógio castigador, entrou para as etapas de alta montanha a 3 minutos do seu compatriota Rigoberto Uran, o líder da classificação geral.
A remontada na 16ª etapa seria tão heróica quanto controversa: quando má comunicação por parte da organização fez crer à maioria dos ciclistas que a descida do Passo dello Stelvio estava neutralizada, Quintana atacou com um companheiro e também Ryder Hesjedal e Pierre Rolland, construindo uma vantagem que se revelou irrecuperável, mesmo até ao final do Giro. Mas o colombiano não quis deixar margem para contestação, e na cronoescalada ao Monte Grappa – ponto importante do percurso de 2024, que vai ser atravessado por duas ocasiões – meteu mais tempo sobre a concorrência, selando a sua primeira conquista de uma grande volta.
“Já se passaram 10 anos desde aquele Giro maravilhoso”, Quintana reflete com orgulho, e a partir daí construiu uma carreira entretida, mas com o drama sempre em plano de fundo. Tendo de competir contra uma armada chamada Sky, não conseguiu vencer o Tour no auge da sua carreira, apesar de ter sido quem mais perto ficou de afundar o porta-aviões, com uma rajada de tiros no Alpe d’Huez. O desespero dos fãs de ciclismo face à rigidez da equipa britânica levou a críticas de exacerbado conservadorismo da parte do colombiano, até que o rendimento começou a diminuir.
Quintana mudou, tal como o ciclismo mudou, e apesar de ter trocado a Movistar Team pela Team Arkéa Samsic em 2020, o coração nunca deixou a equipa espanhola. “É sabido que tive contactos com a Movistar Team no ano passado, e acordámos imediatamente para eu regressar à equipa que tanto sucesso me deu na minha carreira desportiva”, relembra o colombiano. O contentamento com esta nova (velha) oportunidade é evidente. “Foi um ano difícil. Muitos dias sem dormir, um enorme sacrifício”, lê-se no comunicado da equipa, mas no meio do desespero “nunca parei de treinar a pensar em voltar às competições”.
Depois da temporade de hiato, a temporada de 2024 seria sempre uma incógnita. Talvez seja por isso que Nairo Quintana tenha desejado começá-la em terreno familiar. “Foi uma Volta à Colômbia muito emocionante… um país inteiro dedicado a nós! O apoio é incondicional e não tenho palavras para agradecer tudo o que nos dão”, dirige-se aos fãs.
Esse regresso à competição na terra-natal promoveu um gesto de altruísmo, que deixou desde logo a ideia de um ‘novo Quintana’. Quando o companheiro Iván Sosa sofreu um problema mecânico no Alto del Vino, chegada decisiva, Quintana cedeu-lhe a sua bicicleta. “Emprestei a minha bicicleta ao Sosa sem pensar, porque naquele momento da corrida ele estava com um desempenho melhor”, recorda Quintana, fazendo jus à máxima de que “ajudar a equipa quando as coisas não correm bem é fundamental para alcançar maior sucesso no futuro.”
Foi com o intuito de ajudar a equipa, concretamente Enric Mas, que se deu o regresso à Europa. Mas a Volta a Catalunya acabou por evocar uma memória distante, também de estradas espanholas: a queda no contrarrelógio da Vuelta 2014, quando vestia a camisola vermelha de líder. Foi na última tirada da Catalunha que Quintana foi ao chão. “Ao início, pensámos que não era assim tão grave. Mas depois vimos que a lesão me ia deixar sem competir por mais tempo”, situação que reflete a dureza e a imprevisibilidade do ciclismo, apenas acomodadas com a determinação e a esperança dos ciclistas. “Quando estás lesionado há sempre dúvidas sobre a recuperação, mas nunca perdi a esperança de estar na partida do Giro.”
Vindo de lesão, a sua forma física não lhe permite sonhar com a Maglia Rosa de 2014, mas Quintana afirma com toda a convicção que “o meu objetivo em 2024 é ajudar a equipa e, caso se apresente, também procurar a minha oportunidade nalgum momento”. Entre os adeptos, fala-se na camisola da montanha, mas o objetivo não é confirmado por Quintana. Tendo ele e o ciclismo mudado tanto, o único objetivo é “continuar a desfrutar do desporto que tanto amo e contribuir com toda a minha experiência. A nível desportivo é isso que mais me motiva.”
No espírito de quem muito já viveu, e mais está pronto para viver, um bom Giro 2024 para Nairo Quintana seria um Giro 2024 “em que os meus colegas alcancem os seus objetivos, em que não tenhamos percalços e em que eu os ajude de todas as formas possíveis. Se tiver uma oportunidade, também seria bom aproveitá-la.”
Agradecemos a Nairo Quintana e à Movistar Team a disponibilidade para nos conceder esta entrevista, e desejamos-lhe boa sorte para o Giro d’Italia!
Foto de capa: Getty Images
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