Aproxima-se o dia 19 de março. Em muitos países católicos europeus é o dia de celebrar a figura paternal. Em Itália, por exemplo, este dia assume tal importância que é considerado feriado nacional, o dia em que se celebra San Giuseppe, pai de Jesus Cristo. Não, não se enganaram no website. Sim, ainda vamos falar sobre ciclismo, embora a associação pareça algo rebuscada. Este ano, o dia de San Giuseppe é também dia de Milão – Sanremo. E sim, ambas as efemérides estão relacionadas, uma vez que La Classicissima decorre sempre no sábado mais próximo ao dia 19 de março, e este ano coincidem.
O primeiro monumento do ano, percorre, aproximadamente, 300 quilómetros, entre a capital da região da Lombardia e a cidade costeira da Riviera ligure, fazendo desta a corrida profissional mais longa do calendário velocipédico internacional. Com um traçado maioritariamente plano, as únicas armadilhas estão concentradas nos últimos 50 quilómetros da corrida: os famosos capi (Capo Mele, Capo Cervo e Capo Berta), a Cipressa e, o muitas vezes decisivo, Poggio.
Este ano, a expectativa para a corrida é enorme, e há um nome responsável por isso: Tadej Pogačar. É inevitável não associar o nome do ciclista da UAE Team Emirates à corrida que irá acontecer no próximo sábado, e muito se deve às exibições estratosféricas que tem feito recentemente, nomeadamente na Strade Bianche e no Tirreno-Adriático. Pogačar tem eclipsado de tal forma o restante pelotão e dominado as notícias relativas à corrida, que tendemos a esquecer que ciclistas do calibre de Wout van Aert, Primož Roglič, Fabio Jakobsen, Jasper Philipsen, Caleb Ewan ou mesmo Peter Sagan também irão marcar presença na partida no histórico Velódromo Vigorelli. No meio ciclístico, a pergunta mais feita neste momento é quando irá Pogačar atacar, e não se o irá efetivamente fazer, e muitos anseiam mesmo por mexidas na Cipressa. Em boa verdade, se há alguém capaz de dinamitar a corrida é Pogačar, mas quais serão, realisticamente, as hipóteses de que venha a ser bem sucedido com um ataque na Cipressa? Aliás, quantos ataques iniciados na Cipressa foram bem sucedidos até agora? Se é que há algum. Só nos últimos 30 anso, Gabriele Colombo tentou, em 1996; em 1999 Marco Pantani tentou; e em 2014, Vicenzo Nibali também tentou. No entanto, nenhum deles ergueu os braços em Sanremo. E muito dificilmente alguém o irá conseguir fazer, mesmo Pogačar. Isto porque a Cipressa (tal como os capi e o Poggio) não é uma subida particularmente dura (5,7 km a 4% de inclinação média), e os cerca de 11 quilómetros planos que fazem a ligação até ao Poggio permitem que um pelotão ainda bem composto alcance qualquer tentativa de fuga que venha a existir.
Entusiasmo semelhante foi vivido o ano passado, com a presença do trio maravilha: Wout van Aert, Mathieu van der Poel e Julian Alaphilippe. Mas, mais uma vez, nada aconteceu quer nos capi, quer na Cipressa. No Poggio, os big three ainda abanaram a corrida, mas não foi suficiente para se isolarem. Não é portanto difícil de imaginar que o sentimento transversal a grande parte dos fãs da modalidade era de desilusão, pois as suas altas expectativas não foram correspondidas. Nem tinham de ser. Mas de facto, nos últimos anos, a Milão-Sanremo tem sido cada vez mais catalogada como uma corrida aborrecida. Como uma homenagem a San Giuseppe, o pelotão pedala em procissão até ao Poggio, proporcionando depois 15 minutos de espetáculo.
Isto fez, novamente, emergir um debate que não é recente. Porque não alterar o percurso? Porque não incluir subidas mais duras, que promovam o espetáculo, que permitam aos classicómanos e trepadores mostrar algo? No aspeto geral, a Milão-Sanremo tem mantido a essência do ciclismo romântico do início do século 20, quando as corridas de bicicleta se tornavam longas jornadas de aventura, sacrifício e resistência. Na altura, e por não ser uma clássica propriamente complicada em termos de relevo, a distância assumia claramente o papel diferenciador na seleção do pelotão (a forma de correr também era diferente e teria algum impacto). Mais tarde, e à medida que as condições para a prática do ciclismo iam melhorando, quer a nível de estradas, quer a nível de bicicletas, o fator distância passou a assumir menos preponderância no desenrolar da corrida, passando as favorecer as chegadas ao sprint. Uma série de vitórias de atletas estrangeiros levou a organização a incluir no percurso o Poggio (1960) e a Cipressa (final dos anos 70), de forma a endurecer a corrida a favor dos classicómanos italianos. Já em 2008, foi adicionada ao percurso a subida de Le Manie, situada entre o Passo del Turchino e os capi, mas esteve presente na Clássica da Primavera apenas em seis edições. Ainda, no ano de 2014, a organização tinha planeado incluir a subida de Pompeiana, no entanto, um deslizamento de terras meses antes tornou a estrada intransitável, e o plano foi abandonado até aos dias de hoje.
Nos últimos anos, a Milão-Sanremo tem sido uma corrida aberta (e decidida exclusivamente no Poggio). Continua a ser o monumento com maior probabilidade de ser ganho por um sprinter, mas que também se adequa, no contexto certo, a voltistas ou aos homens das clássicas. E para muitos, é esta imprevisibilidade que faz a magia da corrida. Para outros, a opinião vigente é de que o percurso atual castra a atual geração de ciclistas talentosos, arrojados e destemidos de proporcionar espetáculo. É certo que o debate não irá ficar por aqui, e é de salutar que exista. Essa foi também uma das premissas para escrevermos este artigo. No entanto, também é altura de não nos esquecermos do mais importante, a Primavera está a chegar.