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1974 – Liberdade, Agostinho, Vuelta e um contrarrelógio mitológico

A Vuelta sempre foi, e até ainda hoje é vista assim, a menos importante das 3 Grandes Voltas do calendário internacional. É vista por alguns como apenas um prémio de consolação para objetivos falhados no resto da época e, raramente, vemos um ciclista a apontar a Vuelta como maior objetivo para a temporada. O motivo para isto não é particularmente complicado de explicar. Enquanto o Tour começou em 1903, e somente não foi para a estrada nos anos das guerras mundiais, e o Giro em 1909, só parando, também, nos anos das guerras, a Vuelta surge apenas em 1935 (a “nossa” Volta a Portugal surge antes, em 1927, por exemplo), parando devido à Guerra Civil Espanhola de 1937 a 1941. A paragem prolongou-se nos anos da Segunda Guerra Mundial, retomando e voltando a parar várias vezes até 1955, ano a partir do qual decorre ininterruptamente.

Esta entrada tardia, assim como a inconsistência na realização da Vuelta, empurrou a prova para um nível inferior no calendário internacional. Outro fator comprometedor era a localização no calendário, quase sempre acabando assim que começaria o Giro, o que impossibilitava a presença de startlists mais fortes na prova espanhola. Eddy Merckx correria apenas uma vez a Vuelta (ganhando, claro), em 1973, que acabou no dia 13 de maio, indo correr o Giro que começava apenas 5 dias depois. Pode-se, portanto, dizer que a Vuelta acabava por ser uma prova muito importante para as equipas e populações espanholas e portuguesas, sendo que para as grandes equipas da altura era uma excelente prova de aquecimento para o Giro ou para o Tour, que começaria daí a um mês.

Em 1974, o ano que importa para esta história, a Vuelta já se tinha consagrado e alcançado um certo estatuto e importância, mas ainda assim uns degraus abaixo das duas provas rainhas do calendário de provas por etapas. Apesar de tudo, contava com vencedores com nome destacado na história do desporto, como Gimondi, Ocaña, Anquetil, Poulidor e, claro, Merckx. No ano desta história, a startlist da Vuelta é imponente. Marcam presença Luis Ocaña, vencedor da edição de 1970 e vencedor do Tour do ano anterior; Bernard Thévenet, jovem promissor que já havia feito segundo lugar no Tour do ano anterior, e que acabaria por ganhar dois Tours; José Manuel Fuente, já vencedor da Vuelta em 1972 e pódio no Tour de 1973 (se notaram, o pódio do Tour do ano anterior apareceu em Espanha); Miguel Lasa, na altura no auge da carreira e sempre com excelentes resultados em Grandes Voltas; e, claro, o nosso Joaquim Agostinho.

A Vuelta de 1974, devido à sua presença no calendário então (só mudaria para as datas atuais em 1995), começa no dia 23 de abril. Os detalhes de como a Vuelta se desenrola acabam por se tornar um pouco irrelevantes em Portugal. Do dia de 24 para 25 de abril de 1974, Portugal deita-se como uma ditadura, e acaba por acordar com revolução democrática em movimento, e no dia 26, a ditadura é algo que já não existe. Portugal torna-se democracia. Em Espanha, que também estava num período politicamente conturbado, a revolução portuguesa faz ondas. Como qualquer ditadura, a demonstração de superioridade sobre os pares democráticos tem de acontecer em todas as frentes. Superioridade nos valores morais, na ordem social, no plano financeiro e, invariavelmente, no desporto. Mais que nunca, Espanha tem se mostrar a sua superioridade no plano desportivo, não diretamente a Portugal, mas especialmente aos seus cidadãos. Nesse aspeto, tudo estaria relativamente bem delineado. A Kas, equipa espanhola, tem José Manuel Fuente, Miguel Lasa e José González como grandes nomes, prontos a disputar a Vuelta. A Bic tem Luis Ocaña, espanhol, mas na altura persona non grata devido à sua infância em França, como líder e Agostinho como o seu gregário de luxo. Olhando para a startlist, só Thévenet poderá parar um espanhol de vencer esta Vuelta.

Thévenet começa bem a prova, chegando até a liderar as primeiras etapas, e estando na luta até a etapa 13, onde perde 16 minutos. Na etapa 4, Domingo Perurena assume a liderança na geral, nunca mais a Kas perdendo a liderança até ao final da prova. A etapa decisiva é a etapa 13. Nesta etapa, a Kas domina, preenchendo o top-4, e José Manuel Fuente, que já vinha com uma vantagem relativamente confortável sobre os rivais, acaba por pôr o segundo lugar da geral, Miguel Lasa, da sua equipa, a mais de 2 minutos. Nesta etapa, Joaquim Agostinho ataca cedo, segue com o grupo que eventualmente decide a etapa, mas é obrigado a esperar por Ocaña, que num dia muito chuvoso cai numa das imensas descidas da etapa, para além de estar a sofrer com bronquite, perdendo o português 1min20s para o eventual vencedor da prova.

Fuente, ao ataque na imagem, era considerado um dos melhores trepadores do mundo à data e o principal favorito à vitória na Vuelta de 1974.

Nas etapas seguintes e que antecedem o contrarrelógio, Agostinho consegue recuperar cerca de uma dezena de segundos a José Manuel Fuente, entrando a 2:45 do primeiro lugar para a última etapa. Agostinho é um excelente contrarrelogista, José Manuel Fuente não é especialista, mas defende-se bem. Não é esperada uma surpresa. Agostinho deverá recuperar tempo, mas nunca o suficiente.

Num percurso em San Sebastián, Joaquim Agostinho ganha a etapa, ganhando também as bonificações. José Manuel Fuente não pode perder mais que 2:35 se quer ganhar a sua segunda Vuelta. Alguns minutos depois, no velódromo de San Sebastián, chega José Manuel Fuente com um atraso considerável e todos se agarram ao relógio e começam a fazer contas. O impensável pode mesmo acontecer e Agostinho pode ganhar. José Manuel Fuente cruza a meta. Agostinho é declarado vencedor da Vuelta, mas imediatamente a seguir é anunciado o tempo de José Manuel Fuente. 2:24 pior que Agostinho. São 11 segundos de margem. A declaração prévia é corrigida. Afinal, José Manuel Fuente ganha a Vuelta.

José Manuel Fuente foi declarado o vencedor da Vuelta 1974 no Velódromo de San Sebastián, com alguma controvérsia à mistura.

Mais importante, um espanhol ganha a Vuelta a um português, algo que muito jeito dá aos poderes vigentes espanhóis. Não passa muito tempo até se começar a falar em Portugal de má cronometragem, de como a organização espanhola tirou a Vuelta ao ciclista português e cria-se o mito de um contrarrelógio em que José Manuel Fuente demorou, na verdade, mais tempo no seu esforço do que o anunciado, em que lhe tiraram algum tempo no registo oficial. Há quem diga que lhe tiraram 15s, há quem diga que chega a um minuto. Agostinho, na altura, aborda o assunto de forma humilde e sem alimentar polémicas, apesar de afirmar, posteriormente, que lhe roubaram essa Vuelta.

Este é o mito dessa Vuelta a Espana. O relato que já toda a gente ouviu. O relato que se conhece de trás para a frente.

Há um outro relato, porém, que diz algo diferente. Diz que Agostinho foi prejudicado, mas não da maneira que atualmente se associa à perda da sua Vuelta. Este relato diz que Joaquim Agostinho foi mal cronometrado, sim, mas não no contrarrelógio. Para quem não sabe, além de Agostinho, havia também outras presenças nacionais nesta Vuelta, contando-se a presença da equipa da Coelima-Benfica, que chega a ganhar duas etapas seguidas, por Augustín Tamanes, na última semana da prova.

Esta presença motivou uma entourage nacional em Espanha, não só da equipa lusa, como também de pessoas mais próximas dos vários ciclistas, com Joaquim Agostinho à cabeça. Alguém que acompanhou tanto os esforços de Agostinho como de Fuente, diz que a cronometragem da última etapa foi bem feita, dizendo que o “roubo” é feito em etapas anteriores, com segundos adicionados ao ciclista português durante várias etapas. Seriam quantidades pequenas, quase impercetíveis, que a fraca transmissão da altura não revelaria, de forma a não ser demasiado óbvio para quem estaria a acompanhar a prova. Na altura, a cobertura da Vuelta não era como é hoje, pelo que imagens são complicadas de obter, o que torna a análise do que aconteceu no longínquo ano de 1974 (seja a versão tradicional e mais aceite do mito, seja a versão que aqui relato) complicado. Mesmo em várias fontes, os resultados divergem. Nalgumas fontes, Agostinho parte para o contrarrelógio a 2:35 de José Manuel Fuente, e ganha a etapa com 2:14 de avanço. Noutros sites, a história é que Agostinho ganha com 2:34 e não havia bonificações. Para a história fica um mito, um contrarrelógio lendário, e, infelizmente para o ciclismo português, José Manuel Fuente em primeiro e Agostinho em segundo, a 11 segundos. 11 segundos que seriam um não fator se, na etapa que Ocaña cai, tivesse sido dada liberdade ao português.

Nunca se saberá se a Agostinho foi roubada uma Vuelta. Sendo a resposta afirmativa, também nunca se saberá se Agostinho foi roubado nas etapas anteriores ao contrarrelógio, ou no próprio contrarrelógio. O que se sabe, é que o mito perdurará para sempre.

Autor do Texto: José de Sá

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